A adaptação do livro Matéria Escura estreou na véspera de uma longa viagem e da volta de House of the Dragon, por isso ficou à sombra de falta de tempo e tema favorito. Mas a série da Apple TV Plus não é apenas interessante por conta de grandes atuações do elenco ou da qualidade de produção. Nos transporta para uma proposta complexa e ainda assim compreensível, para uma história de reflexão e aventura, terminando sua primeira temporada em alta. O questionamento da série ressona com muitas pessoas em momentos cruciais da vida: se tivesse que escolher, qual versão da sua vida gostaria que pudesse sobreviver? Que versão de você é mesmo… você?

Loki ou Matéria Escura: a profundidade da crise de identidade
Matéria Escura não é a primeira a navegar na complexidade do conceito de multiversos. Loki nos transportou por esse caminho, assim como Homem Aranha: De Volta ao Lar e Dr. Strange no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness): se cada decisão nossa abre uma possibilidade de realidade (um timeline), qual é o “certo”? Se formos forçados a nos encontrar, qual versão de nós mesmos prevaleceria?
Na Marvel, assim como na série da Apple TV Plus, nossos heróis confrontam a dificuldade de lidar com essas questões que só podem ser decididas por a personalidade mais altruísta, não a que busca felicidade própria. É o desafio maior de Loki, que gosta de suas versões, uma delas que causou o caos e que em cada tentativa de consertar, perdia a si mesmo e pessoas queridas. No final das contas, o gênero é fantasia/sci fi, mas a proposta é mais realista que qualquer drama. A jornada do herói é dura, mas, mais ainda, é sua escolha.

Em Matéria Escura, conhecemos o bondoso mas frustrado professor Jason Dessen (Joel Edgerton), um físico que abandonou a carreira de pesquisa que vive em Chicago com a esposa Daniela (Jennifer Connely) e o filho adolescente. Uma noite, ao voltar para casa, Jason é agredido e sequestrado por um homem mascarado que o droga e o coloca em uma caixa. É o início de um longo pesadelo.
O agressor é ele mesmo, literalmente, uma versão alternativa sua que invade sua realidade (timeline) porque decidiu que é essa que importa. Esse “Jason 2” é cruel, egoísta e arrogante, também a versão mais inteligente de Jason 1. Por conta do talento de Joel Edgerton, conseguimos com certa tranquilidade identificar qual é qual, mas sempre através de sutilezas.
Chegamos ao fim da primeira temporada em 28 de junho, sem ainda ter certeza por que Jason 2 quis voltar. Parece que é por Daniela, mas aos poucos percebemos que a vida doméstica é um tédio e um meio para ele, não o objetivo. Enquanto isso, Jason 1 literalmente luta para sobreviver e retornar à sua vida como conhecia. Para isso, ele conta com a ajuda da doce e companheira Dra. Amanda Lucas (Alice Braga), a namorada abandonada de Jason 2 que é a única que pode ajudá-lo.

A partir daí, enquanto Jason 2 se vira nos 30 para poder enganar as pessoas do timeline que passou a viver, Jason 1 e Amanda navegam em várias versões de si mesmos, um confronto que os exaure fisica e psicologicamente. Na versão de Matéria Escura não é apenas uma decisão importante que determina um novo portal, mas o estado de espírito de todos ao seu redor, ou seja, o equilíbrio é sutil e complexo. Quando finalmente consegue dominar parte dessa teia, Jason 1 finalmente chega no tempo que era a sua realidade, mas depara não apenas com Jason 2 tentando impedi-lo: há Jason 3, assim como Jason 4 e Jason 5, seguindo a numeração, também querendo ficar ali. Cada um desses Jasons viajaram e sofreram no tempo e não são mais o homem que eram, pior ainda, cada um considera que é a versão final que merece ficar. Jason 1 não terá apenas que “matar” Jason 2, mas a cada versão de si mesmo, em uma possibilidade infinita.
O que você faria? Afinal, Jason 1 mudou diante do trauma que ainda está vivendo. Se começou a viagem sem conexão com Amanda, surpreso que uma versão de si mesmo amasse outra que não Daniela, ele hoje é mais do que grato à psiquiatra: tem um envolvimento emocional com ela que o faz entender amar duas pessoas e ainda querer salvar as duas mulheres de sua vida de uma versão tóxica e medonha de si mesmo.
Ao longo da viagem, Jenniffer Conelly também tem a oportunidade e a demanda, assim como Edgerton, de interpretar várias Danielas, da bem sucedida à indiferente, cada uma delas encanta o sempre apaixonado Jason 1. Ele testemunha o amor de sua vida ser assassinado, morrer doente, ser sucesso, ser fracasso… sem nunca poder interferir. A única Daniela que passa a importar é a que ele convivia inicialmente e que ele tem certeza ser “a que prevalece”. E essa Daniela corre risco de morte com Jason 2.
Já Amanda poderia ser uma menor oportunidade para Alice Braga, mas a atriz brasileira mais uma vez nos envolve com seu charme e talento, em uma grande atuação. Amanda é a personagem que mais sofre ao longo da história. Ela é a primeira a perceber o que houve, mas como não “via” Jason 2 como o vilão que é, ajudou “Jason 1” quase que por instinto, passando por uma transformação profunda que Alice nos entrega com pequenos gestos.

Amanda é vital para que Jason compreenda o processo de navegar no multiverso e aos poucos os dois vão se ligando emocionalmente. “Eu detesto que você saiba tanto sobre mim”, ele diz em um episódio onde ela demonstra não apenas saber de dados de família dele, mas ainda mais como ele reage e sente sobre tudo que o cerca. “E eu detesto que saiba tão pouco de mim”, ele responde carinhosamente o lembrando que um Jason já a amou mais do que ele ama Daniela. Sim, Matéria Escura é uma aventura, mas nos convida a refletir sobre coisas muito maiores.
Pouco antes do final, Amanda encontra um universo onde percebe que pode ficar e ser feliz. Sua própria versão está desaparecida, portanto não há risco de esbarrar com ela. Ali, como diz à Jason 1, pode recomeçar. “Você tem para onde ir”, ela explica emocionada porque a escolha dele é Daniela, mesmo depois de tudo que sobreviveram juntos. “Eu não. Estarei sozinha sempre”, continua. Juro, Alice me fez chorar e questionar sobre amadurecimento e escolhas. Jason 1 brinca que há um Jason que a escolheria e que ele gostaria de ser ele, mas que ainda precisa voltar para sua origem. Amanda respeita a escolha e os dois se separam. Por hora.
A Suprema “Escolha de Sofia”
A escolha de Amanda de parar e sair da corrida não é covarde ou egoísta, ao se abster de testemunhar Jason ficar com Daniela, ela dá à família dele a chance de tê-lo. Se essa versão de Amanda estiver no mesmo timeline, ela terá uma conexão com ele tão ou mais forte que Daniela, alterando constantemente a relação dele com a esposa. O sacrifício de Amanda, que é o que Loki, Peter Parker e Dr. Estranho fazem é o do nosso cotidiano também. Porque saber qual das suas versões sobrevive determina igualmente as de quem você ama. Como escolher?

Quando comento a temporada aqui, estamos a dias do episódio final. Jason 1 finalmente reencontrou Daniela, mas ele ainda terá que encarar suas versões, mais ainda, a do cruel Jason 2. Angustiante como soa, Matéria Escura é uma ótima série. A ver como conclui e se continua!
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