A cada quatro anos nos encantamos com atletas que por algumas semanas se tornam Deuses em nossas telas, entram em nossos corações e nos emocionam com suas trajetórias de superação. Alguns viram lendas, como Nadia Comaneci e agora, Simone Biles. Mas há outras cuja glória pode ser esquecida, embora não devesse. A campeã olímpica Elena Mukhina é uma dessas.

Me envergonho em comentar que por ter sido muito pequena quando me encantei com Nadia, que, impactou gerações com sua imagem de 14 anos ganhando o inalcançável 10 perfeito, ofuscou em parte a narrativa de Elena, que poderia ter sido sua grande rival em 1980, se a tragédia não a impedisse.
A história de Elena reforça a força de espírito de Simone Biles, que “ousou” desistir de cinco dos seis eventos nas Olimpíadas de 2021, para priorizar sua saúde mental e se resguardar de um acidente. Para os que a criticaram pela decisão, vale relembrar a história de Elena, que, por viver em tempos mais opressores para as mulheres e pessoas em geral, não teve a mesma opcão porque em tempos de Guerra Fria, o bem-estar de um atleta sempre jamais teria prioridade,
Quem foi Elena Mukhina: de mediana à “rival” de Nadia
Nascida em Moscou, Elena Mukhina ficou órfã com apenas cinco anos, quando seus pais morreram e ela passou a ser criada pela avó. Desde cedo manifestou interesse por ginástica e patinação artística e foi descoberta por um “olheiro”, que a levou para o Clube Esportivo Central do Exército Soviético.
Seus sonhos de medalha pareciam ser, no entanto, um tanto “ousados” e, até 1975, era considerada apenas comum, sendo ignorada pelos treinadores que estavam obcecados pela glória de medalhas em um tempo de domínio romeno. Elena não se classificou para Montreal e a apresentação lendária Nadia Comaneci, que ficou com todos os Ouros naquele ano, foi considerada uma derrota era inadmissível pelos soviéticos.

Quem “pagou” inicialmente pela superioridade romena foi a técnica de Elena, imediatamente afastada da equipe e definindo, indiretamente, a curva trágica para o caminho da pupila, que passou a ser treinada pelo técnico masculino, muito mais severo em suas orientações. A princípio, tudo parecia lindo, sob o comando de Mikhail Klimenko, Elena passou de mediana para uma das ginastas mais espetaculares de seu tempo, fazendo história também.
Em 1978, apenas dois anos depois do show de Nadia no Canadá, Elena dominou o Campeonato Mundial na França, conseguindo o ouro e derrotando as favoritas: a própria campeã olímpica, Nadia Comăneci e assim como a ginasta soviética mais bem classificada Nellie Kim, entre outras. Ela foi a mais comentada e premiada daquele ano, levando o ouro na final nos exercícios de solo, e a prata na trave de equilíbrio e nas barras assimétricas.

Hoje dá um arrepio na espinha citar que ela também fez história ao criar um movimento perigoso e incrível, o giro completo de Korbut nas barras, que é um salto duplo para trás na trave (usado até hoje) e sair da trave com um salto mortal duplo para trás com giro completo no chão, que levou o seu nome, “Muchina” (uma alusão à máquina em inglês porque lembra o sobrenome de Elena, Mukhina). Mais ainda, a graça de Elena era sua diferença: ela trouxe os movimentos de balé clássico para a ginástica, sendo portanto a maior esperança e estrela das Olimpíadas de Verão de 1980, em Moscou. Não era para ser…
A pressão, a tragédia e o jogo de culpas
Para a União Soviética, sediar os jogos olímpicos era uma oportunidade ímpar de propaganda e a chance de provar a superioridade contra seu “inimigo”, os Estados Unidos (que boicotou a competição). No entanto, na Ginástica Olímpica Feminina, era a chance de confirmar quem seria a melhor: Romênia ou URSS, uma vez que Nadia Comaneci vinha para defender seu Ouro da competição anterior e Elena a enfretaria diretamente, algo que não aconteceu em Montreal. A pressão era estratosférica.
No final de 1979, durante um treinamento, Elena Mukhina sofreu uma fratura na perna e perdeu a chance de estar no Campeonato Mundial em Fort Worth, Texas. Como a equipe soviética voltou a perder para as arquirrivais romenas, foi decidido que a recuperação de Elena deveria ser “acelerada”, mesmo contra a vontade dela. Após a cirurgia, ainda estar com perna sem ter cicatrizado, ela voltou a treinar.

Com dores e um desempenho reduzido, decobriram que a fratura não havia cicatrizado adequadamente e por isso a atleta foi levada às pressas para a cirurgia novamente. E mais uma vez, assim que pôde ficar de pé, voltou a treinar. Ao manifestar contrariedade ao que estava acontecendo, ela foi considerada “muito sensível e preguiçosa”, mesmo treinando diariamente até 8 horas antes de se machucar.
“Uma vida humana valia pouco em comparação com o prestígio da nação”
Elena Mukhina
A duas semanas do início dos Jogos, a tragédia anunciada se cumpriu: durante o treino, ao insistir no movimento do salto Thomas, um dos mais perigosos e hoje banido da competição, Elena caiu de queixo e sua coluna quebrou. Ela ficou tetraplégica imediatamente. O sonho da glória para sempre impossibilitado por conta da ganância do sistema, ignorando a saúde física e mental da atleta que teve sua vida destruída.
A verdade do acidente foi mantida em segredo pela Federação Soviética de Ginástica, mantendo Elena reclusa e com poucas oportunidadades de discutir o que houve publicamente. A imprensa e as autoridades soviéticas usaram de informações falsas que minimizavam a gravidade da lesão, alterando a razão e descrevendo a condição da atleta como “um problema temporário”.
Para piorar, quando a verdade veio à tona, a culpa da lesão foi colocada creditada à Elena, com artigos alegando que foi ela quem insistiu no movimento difícil desrespeitando as ordens de seu treinador. Isso não aconteceu, ela alertou várias vezes que não estava pronta, mas foi ignorada, com ninguém assumindo a responsabilidade pelo incidente.
“Uma vida humana valia pouco em comparação com o prestígio da nação…”, ela comentou em uma entrevista para uma revista russa.
O que é o “salto Thomas”
O salto Thomas, hoje proibido e removido do Código de Pontos após vários acidentes graves, em especial o de Elena Mukhina, foi ‘criado’ pelo ginasta americano Kurt Thomas, nos jogos olímpicos de Montreal em 1976.
Extremamente difícil e perigoso, ele era realizado durante o exercício de solo na ginástica artística e consiste em “um salto 1½ para trás em uma posição dobrada ou piked com 1½ torções ou um salto 1½ para trás em uma posição de layout (reta) com 1½ torções”. Em resumo: um mortal que gira e impressiona, mas um atalho para tragédia também.
Essa mistura de atletismo e exibicionismo foi introduzida por Thomas, que é uma lenda nos EStadis Unidos com várias medalhas. Ele também criou o “Thomas Flair” no cavalo com alças. Ele faleceu em 2020.
A verdade e a perseverança
A campanha de encobrimento atrapalhou não apenas a vida de Elena, como o seu legado pois uma das versões da Federação Internacional de Ginástica (FIG) na época alegava que ela “sumiu” porque decidiu se aposentar. Sem saber da verdade, os fãs passaram a cobrar seu retorno, indiretamente contribuindo para afligir a justificável vulnerabilidade da saúde mental da ginasta. A URSS não a destacava em nada nas referências esportivas e as pessoas começaram a esquecê-la.

O gasliting foi ainda pior: ao culpar a vítima, traçando a narrativa de uma atleta ambiciosa e irresponsável, ficou ainda mais clara quando oficiais soviéticos afirmaram que Elena poderia ser facilmente substituída. Segundo o relato da época, “traumatizada” por não ter se classificado para Montreal, Elena quis incluir o passo mais difícil para garantir sua presença na equipe, mas que “caiu e se machucou”. Como estava com 20 anos, que era o limite da idade para competir, achou que deveria sair.
Paralisada do peito para baixo para o resto de sua vida, Elena viu seu sonho e a única coisa que trazia próposito para sua vida, serem tirados dela. Me lembra a triste história da bailarina Tanaquil Leclerc, que também ficou restrita a uma cadeira de rodas até sua morte. Sem nenhuma surpresa, Elena se viu profundamente deprimida e solitária para se adaptar à nova realidade. Alinhada com a falsa narrativa de que ela cavou sua cova, foi virtualmente abandonada pelos amigos e colegas, ficando isolada e tratada apenas por sua avó. Mas, aos poucos, recuperou a positividade e razão para viver. Ela foi uma das mais vocais advogadas para denunciar o assédio moral e riscos de saúde mental no sistema soviético. Ela faleceu de complicações aparentes da tetraplegia em 2006, aos 46 anos.
A importância de lembrar de Elena
Um artigo do New York Times apresentou para gerações que jamais ouviram falar em Elena, ou não lembravam mais dela (meu caso, por vergonha dolorosa). A abertura relata como a ginasta tentou ser ouvida, mas se viu forçada a obedecer e tentar o melhor, apesar da dor e do risco, quando seu técnico ouviu os apelos com desdém e afirmou que “pessoas como ela não quebravam o pescoço”. Ela entendeu que o Governo Soviético esperava ainda mais, que sua trajetória de recuperação em um curto período de tempo a fizesse ser lendária.
“Eu realmente queria justificar a confiança depositada em mim e ser uma heroína”, disse ela em uma entrevista anos depois. Porém, assim que caiu e deixou imediatamente de sentir nada do pescoço para baixo ela pensou: “Graças a Deus, não irei para as Olimpíadas”.
Que dor.
A tragédia de Elena teve efeito imediato naqueles que sabiam da verdade e que ainda hoje a defendem por ser tão jovem e vulnerável à pressão. Assim que recuperou a liberdade de falar, a ginasta endossou a campanha para priorizar a saúde mental dos atletas e não reforçar a ilusão de heroísmo, que, infelizmente até hoje, é uma narrativa favorita da mídia.
“Os fãs foram treinados para acreditar no heroísmo dos atletas — atletas com fraturas retornam ao campo de futebol e aqueles com concussões retornam à pista de gelo”, ela disse. “Por quê?”

Porque projetamos nosso desejo de superação, da proximidade do divido e do irreal, infelizmente.
Elena recebeu a Ordem do Distintivo de Honra da União Soviética, em 1980, como alento por seu ferimento, assim como a Medalha de Prata da Ordem Olímpica, em 1983, que é mais prestigiosa do que uma medalha olímpica e reservada apenas atletas que deixaram um legado maior do que esportes. Certamente, é o seu caso.
Elena se recusou a se vitimizar e sempre concedeu que os treinadores e oficiais também eram vítimas do sistema implacável e ambiente brutal que era usual naqueles anos. Ela esperava que sua experiência, embora triste e trágica, fosse a referência positiva para que outras ginastas soubessem traçar o limite, exatamente como Simone Biles fez 41 anos depois.
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 ainda estão acontecendo enquanto posto essa lembrança. Um reforço de homenagem e respeito às ginastas que estão fazendo história. Sem esquecer jamais quem pavimentou o caminho delas até o podium.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
