Léo Delibes: A Música que Transformou o Balé

Devo confessar que quando dançava, considerava a música do ballet Sylvia um tanto difícil por ser quase uma sinfonia, mesmo que usasse leimotifs e incluísse um dos pas de deux mais dançados em Galas e competições. Apreciava o humor das melodias de Coppélia, mas Sylvia era mais complexo para mim. Isso está no passado. Hoje é um dos meus balés favoritos e o fato de estar mais uma vez em cartaz com o American Ballet Theatre me fez repensar no seu histórico. Quando completou 145 anos, em 2021, fiz um apanhado aqui em Miscelana, mas hoje o retomo como curiosidade.

Na Paris do século 19, em meio a uma cena cultural vibrante e em constante transformação, o compositor Léo Delibes deixou uma marca que atravessou fronteiras e gerações. Nascido em 1836, Delibes não foi um enfant terrible nem um revolucionário ruidoso. Pelo contrário, seu caminho foi construído com delicadeza, elegância e um apurado senso de forma, cor e drama musical. Ao lado de nomes como Georges Bizet e Jules Massenet, ele ajudou a definir o romantismo francês tardio. Mas foi no mundo do balé que Delibes realizou sua mais silenciosa — e duradoura — revolução.

Antes de Delibes, a música de balé era vista quase como pano de fundo, um artifício cênico que servia à dança, mas raramente desafiava ou engrandecia a coreografia. Com Coppélia (1870) e Sylvia (1876), ele subverte essa lógica. Elevou a música de balé a um patamar que poderia ser escutada com deleite mesmo fora do palco, nos salões, nos concertos e, com o tempo, nas salas de gravação. Sua contribuição é comparável à de Tchaikovsky, que o próprio Delibes, aliás, influenciaria diretamente.

Sem dúvida, Coppéli é sua obra mais célebre, e nasceu do encontro entre uma atmosfera de conto de fadas e um enredo de toques góticos — inspirado em um conto de E.T.A. Hoffmann, onde uma boneca mecânica é confundida com uma jovem real. A adaptação feita pelo coreógrafo Arthur Saint-Léon suavizou os elementos mais sombrios da narrativa e transformou a história em uma farsa romântica, com sabor aldeão e energia popular. Foi aí que Delibes brilhou: criou uma partitura viva, melodiosa e teatral, combinando danças folclóricas — como mazurkas e czardas — com orquestrações ricas, mas transparentes. A Mazurka do primeiro ato e a Valsa de Swanilda se tornaram peças favoritas entre músicos e plateias, e ainda hoje fazem parte de recitais sinfônicos.

O sucesso de Coppélia, contudo, foi atravessado por tragédias, como também já mencionei aqui, em esse post de 2021. Pouco após a estreia, a jovem bailarina Giuseppina Bozzacchi, que criara o papel de Swanilda, morreu de cólera com apenas 17 anos. Eclodiu também, naquele ano de 1870, a Guerra Franco-Prussiana, que abalou profundamente a vida cultural parisiense. Ainda assim, Coppélia sobreviveu e prosperou. Mais do que um sucesso de ocasião, ela inaugurou um novo modelo de balé: narrativo, musicalmente coeso e capaz de existir como arte total.

Se Coppélia encantou pela leveza e pelo colorido, Sylvia, criada seis anos depois, revelou uma faceta mais ambiciosa e refinada de Delibes. Agora plenamente consagrado, ele recebeu a encomenda de um balé mitológico, baseado na peça pastoril Aminta, de Torquato Tasso. Sylvia se afasta do tom cômico para mergulhar em atmosferas etéreas, sensuais e heróicas. Logo na abertura, uma peça de construção sinfônica impecável, nota-se a elevação de linguagem: o balé já não começa com leveza, mas com grandiosidade e tensão dramática.

A partitura de Sylvia é cheia de contrastes e invenções harmônicas. Delibes explora a orquestra com liberdade — destacando madeiras, harpas e metais com clareza e ousadia. A sensualidade das ninfas, a bravura do caçador Aminta, o domínio da deusa Diana: tudo é traduzido musicalmente com precisão e poesia. Entre os trechos mais célebres está a própria “Ouverture”, frequentemente executada de forma independente em concertos sinfônicos, com seu lirismo heroico e arquitetura wagneriana. Outro destaque é o “Pizzicato”, do Ato III — uma peça leve, espirituosa e rítmica, escrita inteiramente para cordas tocadas com pizzicatos (beliscando as cordas), que virou favorita de orquestras e coreógrafos contemporâneos por sua clareza e brilho.

Também notável é a “Marche et Cortège de Bacchus”, que fecha o balé com exuberância dionisíaca, e foi reorquestrada por nomes como George Balanchine e até usada em filmes e animações. Esses trechos, embora diferentes em caráter, revelam o domínio absoluto de Delibes sobre a narrativa musical: cada peça possui identidade própria e, ao mesmo tempo, serve à construção de um arco dramático contínuo.

Curiosamente, Sylvia não teve sucesso imediato. A crítica considerou o libreto confuso e a coreografia sem brilho. Mas a música — refinada, densa, com harmonia ousada e timbres inovadores — sobreviveu. Entre os que a reconheceram como obra-prima desde o início estava ninguém menos que Piotr Ilyich Tchaikovsky.

Em 1877, pouco antes de começar a compor O Lago dos Cisnes, Tchaikovsky escreveu a seu editor e amigo Nikolai Kashkin dizendo:

“O balé Sylvia de Delibes é uma joia. Que graça! Que riqueza melódica! Que orquestração refinada! Melhor do que qualquer coisa que Minkus ou Adam fizeram. Se eu conseguir fazer algo do mesmo nível, terei cumprido meu papel.”

A carta é datada de janeiro de 1877, época em que Tchaikovsky já estava profundamente envolvido com a ideia de transformar o balé em arte musical elevada — e Sylvia lhe mostrou que isso era possível. O elogio sincero é mais que uma opinião: é o testemunho de uma virada estética no balé europeu, em que a música deixou de ser subserviente à dança e passou a construir sentidos por si só.

É curioso notar que Delibes não se restringiu ao balé. Sua ópera Lakmé, estreada em 1883, também se tornou um marco, especialmente por causa do delicado e encantador “Duo das Flores” — um dueto para soprano e mezzo-soprano que continua a emocionar ouvintes em filmes, comerciais e concertos ao redor do mundo. A peça revela o domínio que Delibes tinha da melodia e da textura instrumental: as vozes se entrelaçam com fluidez, acompanhadas por uma orquestração leve, quase transparente, em um estilo que antecipa até mesmo o impressionismo.

Mas é mesmo no balé que sua influência é mais profunda. Delibes tratava a música como linguagem dramática, criando arcos, atmosferas e personagens através dos timbres. Ele recusou a superficialidade funcional e mostrou que a dança merecia música com a mesma densidade emocional da ópera. Foi ele quem abriu o caminho para a integração moderna entre partitura, movimento e emoção.

Delibes morreu jovem, em 1891, aos 54 anos. Sua vida foi discreta, sem escândalos ou grandes viagens — mas seu legado continua a ecoar nos palcos do mundo. Coppélia e Sylvia não são apenas marcos do repertório clássico: são símbolos da capacidade que a música tem de transcender o tempo, de reinventar o gesto e de dar voz à dança. Delibes fez isso com graça, inteligência e um ouvido afinado para o eterno.


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