O ano passou tão rápido que o aniversário de 75 anos do clássico Cinderella, em fevereiro de 2025, quase passou sem registro por aqui. “Quase”. Como poderia deixar passar? Há filmes que não envelhecem — apenas ganham novas formas de brilhar. Cinderella (1950) é um desses raros milagres.
A história de uma jovem que transforma dor em esperança atravessou gerações e, mais do que um conto, tornou-se o símbolo da própria Disney: a crença de que a magia existe — e pode ser restaurada.
O conto que virou espelho
Séculos antes de chegar às telas, a história de Cinderella já era contada em várias culturas, sendo uma das mais antigas e universais da humanidade. Sua origem atravessa séculos e fronteiras, mudando de forma, mas sempre preservando a mesma essência: a de uma jovem oprimida cuja bondade e coragem são recompensadas.
A versão mais antiga conhecida vem do Egito Antigo. O historiador grego Estrabão, no século I antes de Cristo, registrou o conto de Rhodopis, uma escrava grega que vivia no Egito e teve sua sandália roubada por uma águia. A ave, enviada pelos deuses, deixou cair o sapato no colo do Faraó, que interpretou o gesto como um sinal divino. Ele partiu em busca da dona do calçado e, ao encontrá-la, a tomou como esposa. É a primeira aparição documentada do “motivo do sapato perdido” — um símbolo de destino, identidade e reconhecimento que marcaria todas as versões futuras.
Muitos séculos depois, na China, durante a dinastia Tang, surgiu Ye Xian, uma órfã maltratada pela madrasta, que encontra amizade em um peixe mágico. Quando o peixe é morto, o espírito do animal continua a ajudá-la, concedendo-lhe um vestido e sapatos feitos de ouro e penas para ir a um festival. O rei se apaixona por ela ao encontrar um dos sapatos perdidos. É uma história mais espiritual do que romântica — onde o sapato representa pureza e a intervenção divina recompensa a virtude silenciosa.
Essa versão chinesa viajou pelas rotas comerciais até a Europa e, séculos depois, inspirou as narrativas populares que circulavam entre os camponeses e nobres. A mais conhecida delas foi italiana: “La Gatta Cenerentola”, publicada por Giambattista Basile em 1634. A heroína, Zezolla, sofre nas mãos da madrasta, mas é ajudada por uma fada que vive dentro de uma tamareira mágica. É dessa história que nasce o termo Cenerentola — “a moça das cinzas” — e também o tom mais adulto e sombrio, onde há vingança, castigo e moralidade.

Quando Charles Perrault publicou sua versão em 1697, ele civilizou o conto. Cendrillon é mais elegante, mais moral, mais otimista. A fada-madrinha substitui os espíritos e as árvores mágicas; o baile e o sapatinho de vidro entram como símbolos da delicadeza e da graça, não do poder. A crueldade dá lugar à virtude, e a lição é simples: a gentileza é o verdadeiro milagre.
Perrault transformou um conto ancestral em uma fábula moderna sobre fé e recompensa — e foi essa versão que encantou Walt Disney quase três séculos depois. Ele viu em Cinderella não apenas uma princesa, mas uma metáfora sobre renascimento, perseverança e a crença no improvável — a base de todo o universo Disney: sonhos e pedidos que viram realidade.
O sonho antigo de Walt
Walt já havia tentado adaptar Cinderella em 1922, no Laugh-O-Gram Studio, e voltou à ideia em 1933 nas Silly Symphonies. Em 1938, o projeto quase virou realidade — com versões de roteiro que incluíam uma madrasta chamada Florimel de la Pochel, ratos, uma tartaruga e ajudantes do príncipe.
A guerra e a crise adiaram tudo. Em 1943, Dick Huemer e Joe Grant retomaram o trabalho, mas só em 1946, quando a Disney começava a se reerguer, o projeto foi realmente aprovado. Maurice Rapf escreveu uma versão em que Cinderella era mais rebelde — uma mulher que se recusava a aceitar a humilhação. Embora o roteiro tenha sido descartado, seu espírito sobreviveu na personagem que conhecemos: resiliente, mas nunca submissa.
Por volta de 1947, com Ted Sears, Homer Brightman e Harry Reeves, Walt finalmente encontrou o tom certo. Era a hora de voltar ao conto de fadas — e salvar o estúdio.

O risco e o renascimento
Nos anos 1940, a Disney enfrentava uma crise devastadora. Após a Segunda Guerra Mundial, Pinóquio, Fantasia e Bambi haviam decepcionado nas bilheteiras, e o estúdio sobrevivia com produções menores.
Walt decidiu apostar tudo em um retorno às origens. Escolheu Cinderella como o filme que traria de volta o público — e colocou seu prestígio (e recursos) em jogo para financiá-lo. O roteiro, desenvolvido por Ted Sears, Homer Brightman e Bill Peet, transformou o conto em uma narrativa sobre resistência silenciosa: a história de alguém que não se torna forte apesar da bondade, mas por causa dela.
Personagens, vozes e humanidade
A escolha da voz da protagonista definiu o tom do filme. Quase 400 atrizes disputaram o papel, mas Ilene Woods, cantora de rádio, foi eleita depois que Walt ouviu suas demos de “A Dream Is a Wish Your Heart Makes” e “So This Is Love”. Walt decidiu que ela era Cinderella.
A vilã Lady Tremaine foi dublada por Eleanor Audley, cuja interpretação gelada e elegante marcou tanto que ela voltaria a ser escalada, anos depois, como Malévola, em A Bela Adormecida (1959). Uma curiosidade que reforça como a Disney via Audley como a personificação da sofisticação sombria — vilãs movidas não pela feiura, mas pelo controle.

Verna Felton, eterna voz de figuras maternais da Disney, deu vida à Fada-Madrinha, equilibrando doçura e humor. (Ela também foi a Rainha de Copas em Alice no País das Maravilhas, a Matriarca dos Elefantes em Dumbo e a fada Flora em A Bela Adormecida.)
Música e emoção
A trilha sonora, assinada por Mack David, Jerry Livingston e Al Hoffman, é a alma do filme.
“A Dream Is a Wish Your Heart Makes” se tornou um hino de esperança, enquanto “Bibbidi-Bobbidi-Boo” recebeu indicação ao Oscar de Melhor Canção (1951). As duas traduzem a filosofia de Walt: fé no impossível e alegria como forma de sobrevivência.

Animação com vida real
Para reduzir custos e dar fluidez ao movimento, a Disney utilizou amplamente filmagens de referência com atores reais. A atriz Helene Stanley foi escolhida para interpretar Cinderella nas cenas em live-action, servindo de base para os animadores desenharem cada gesto. Stanley voltaria a colaborar com o estúdio como referência para Aurora em A Bela Adormecida e Anita em 101 Dálmatas.
Os animadores também filmaram atores para o Príncipe (baseado em Jeffrey Stone) e a Fada-Madrinha (Claire Du Brey, cujo design final se inspirou em Mary Alice O’Connor, esposa do artista Ken O’Connor).
Mas essa técnica — criada para economizar — gerou tensões artísticas. O animador Frank Thomas contava que o método limitava a imaginação: “Se você pensava em um novo enquadramento, ouviam: ‘Não dá pra subir a câmera!’ Mas no mundo da animação, tudo é possível.” Ainda assim, o resultado foi uma naturalidade sem precedentes, especialmente nas expressões humanas.
Os “Nine Old Men” e a criação dos personagens
Por volta de 1950, a Disney contava com seu lendário grupo de supervisores — os Nine Old Men: Frank Thomas, Ollie Johnston, Les Clark, Wolfgang Reitherman, Eric Larson, Ward Kimball, Milt Kahl, John Lounsbery e Marc Davis.
Eric Larson começou animando uma Cinderella jovem e simples, mas Walt preferiu o traço mais refinado de Marc Davis, que imaginou uma heroína de pescoço longo e elegância clássica. O animador Ken O’Brien unificou os estilos, definindo a versão final da personagem.

Frank Thomas, acostumado a figuras doces como Pinóquio e Bambi, ficou surpreso ao ser encarregado de animar Lady Tremaine — um desafio que resultou em uma das vilãs mais sofisticadas do estúdio. Curiosamente, a voz de Tremaine foi feita por Eleanor Audley, que mais tarde também dublaria Malévola.
Milt Kahl cuidou da Fada-Madrinha, do Rei e do Grão-Duque, insistindo que a fada fosse maternal e engraçada — e não distante, como a Fada Azul de Pinóquio.
Os animais, por outro lado, foram criados puramente da imaginação dos animadores. Foi Ward Kimball quem desenhou o gato Lucifer, inspirado em seu próprio bichano, e Reitherman quem animou a sequência épica em que os ratinhos Jaq e Gus arrastam a chave escada acima.
A cena que definiu a Disney
A sequência da transformação — quando a fada transforma o vestido rasgado no icônico traje azul prateado — foi cuidadosamente supervisionada por Walt. Ele a considerava “a essência do sonho”, e é fácil entender por quê: em dois minutos de pura animação, a arte se torna transcendência.
Essa cena foi a virada que o estúdio precisava. Cinderella arrecadou mais de US$ 85 milhões, salvou a Disney da falência e financiou o nascimento da Disneyland.
A estreia que mudou tudo
Cinderella estreou em 15 de fevereiro de 1950. Foi o maior sucesso da Disney desde Branca de Neve e os Sete Anões, arrecadando US$ 4,28 milhões em rentals nos EUA e Canadá, tornando-se o 5º filme mais popular de 1950 na América do Norte e, em 1951, também o 5º no Reino Unido. Na França, vendeu 13,2 milhões de ingressos — entre os maiores públicos da história do país. Ao longo das décadas, acumulou US$ 182 milhões mundialmente (reprises incluídas) e, ajustada pela inflação, cerca de US$ 565 milhões.
O êxito foi tão grande que permitiu à Disney financiar a década seguinte — de Alice no País das Maravilhas a Peter Pan e A Bela Adormecida —, entrar na TV, consolidar a distribuição própria e erguer a Disneyland (e mais tarde o Florida Project, hoje Walt Disney World).
O renascimento em live-action (2015)

Branagh não reinventou, mas aprofundou. A gentileza de Cinderella se torna resistência, e Lady Tremaine, interpretada por Blanchett, ganha humanidade sem perder a crueldade.
O figurino de Sandy Powell, a trilha de Patrick Doyle e a direção clássica devolveram ao conto sua força universal — e mostraram que, em tempos de ironia, a sinceridade ainda é revolucionária.
O legado
Cinderella foi recebida com aclamação crítica, três indicações ao Oscar (Trilha Musical, Som e Canção Original) e, desde então, seguiu rompendo fronteiras: do boom de home video (o VHS de 1988 quebrou recordes) às restaurações sucessivas. De 1950 a 2025, o filme permanece como lembrete de que beleza e esperança não se perdem — mudam de forma. O castelo que abre cada filme da Disney é o seu castelo. O sonho que salvou um estúdio é o mesmo que, 75 anos depois, continua a inspirar novas gerações.
Porque, como a própria música diz, “A dream is a wish your heart makes.” E sonhos — os verdadeiros — não envelhecem. Cinderella continua a lembrar que acreditar neles é, sempre, o primeiro passo da transformação.
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