Ver Tom Cruise recebendo o tão sonhado Oscar, ainda honorário, traz outra perspectiva sobre o lançamento e conteúdo do documentário Being Eddie, da Netflix, uma conversa inédita, franca e íntima com uma das maiores lendas de Hollywood, o comediante Eddie Murphy. Sim, outro astro honesto quanto às esnobadas que recebeu da Academia.
Olhando assim, há algo quase inevitável quando Hollywood decide revisitar um ícone: a sensação de que estamos assistindo não apenas a um documentário, mas a uma construção deliberada de legado. Being Eddie chega justamente com essa energia, e talvez por isso a crítica tenha recebido o filme com uma mistura de carinho, estranhamento e cautela. É um doc elegante, repleto de material de arquivo e anedotas irresistíveis, mas que, ao mesmo tempo, parece se contentar com a superfície de uma figura que sempre foi mais complexa do que a própria indústria quis admitir.

E é aí que entra o que não está no filme: as sombras omitidas que teriam dado textura ao retrato. O doc evita enfrentar, por exemplo, o período turbulento dos anos 1990, quando Murphy foi massacrado pela imprensa sensacionalista, especialmente no episódio envolvendo uma mulher trans — tratado, no filme, apenas como uma nota lateral, sem discussão sobre o trauma ou o contexto transfóbico avassalador da época. Também passa rápido pela fase em que Hollywood deixou de considerá-lo prioridade, ignorando tensões reais: a queda de prestígio, a sequência de filmes recebidos com sarcasmo, o silêncio profissional que pesou como um exílio involuntário. Até mesmo a relação dele com a Academia, marcada pelo discurso de 1988 sobre racismo, que muitos acreditam ter lhe custado votos e oportunidades por anos, aparece suavizada.
Há ainda silêncios sobre sua vida pessoal: conflitos familiares, desafios de conciliar carreira e intimidade, as dinâmicas complexas de um artista que cresceu sob os holofotes e nunca pôde simplesmente ser anônimo. Murphy sempre foi reservado, e o doc respeita isso a ponto de quase não arranhar a superfície. O peso do racismo estrutural ao longo da carreira dele — algo que moldou papéis, contratos e expectativas, é mencionado, mas não aprofundado. E a dor do Oscar perdido por Dreamgirls, um capítulo amargo que o próprio Eddie raramente comenta, fica reduzida a uma lembrança distante, sem explorar a campanha tóxica de bastidores que todo mundo em Hollywood conhece.
Mas, quando o doc decide mostrar, mostra bem. O acesso é ótimo: Eddie está lá, falando, lembrando, costurando sua trajetória desde o garoto precoce do SNL até o astro que redefiniu bilheterias e abriu portas antes trancadas para artistas negros. O público fã encontra exatamente o que quer: charme, humor, vulnerabilidade controlada, histórias saborosas de bastidores. A sensação é deliciosa, mas incompleta.
E aí surge a pergunta inevitável: por que lançar isso agora?
Porque 2025 é um ano simbólico para Eddie Murphy, um momento de inventário, talvez também de reposicionamento. Depois de quatro décadas de carreira, ele entra naquela fase em que Hollywood transforma artistas em instituições. O streaming está faminto por narrativas de legado; Murphy, sempre dividido entre genialidade e silêncio calculado, parece ter decidido que chegou a hora de contar sua história, do jeito dele.

Há também o fator cultural: a reavaliação das trajetórias de artistas negros com outra lente, menos condescendente e mais consciente de seus impactos reais. Murphy foi, e é, um desses pilares. Some a isso o poder da nostalgia, e Eddie ocupa um espaço afetivo monumental na memória coletiva dos anos 80 e 90. Ou seja: é quase impossível lançar um documentário sobre ele sem transformá-lo automaticamente em evento.
Mas existe algo ainda mais direto: Eddie Murphy está voltando. Novos projetos, reposicionamento público, presença renovada em entrevistas. Being Eddie funciona como prólogo de uma nova fase. É menos um olhar para trás e mais um relançamento cuidadosamente coreografado.
No fim, o doc diz muito, inclusive quando escolhe não dizer. Reafirma Eddie como gigante, mas também expõe seu desejo permanente de controlar o que mostra e o que guarda. E talvez essa seja a ironia final: para alguém que sempre viveu no delicado equilíbrio entre brilho e reserva, Being Eddie chega exatamente como ele gostaria, controlado, vistoso, cheio de histórias, mas sem jamais entregar tudo. E talvez por isso faça tanto sentido ter sido lançado agora, quando a memória pesa, o legado importa e o futuro, mais uma vez, se abre.
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