Maternidade no universo da Disney sempre foi um tema sensível — e, em muitos casos, doloroso. As heroínas são quase sempre órfãs e maltratadas, raramente encontram amparo feminino fora da magia. É um padrão que vem sendo reescrito para futuras gerações.
Malévola, por exemplo, reinventou A Bela Adormecida sob uma ótica moderna e empática. Cinderella (2015) também tentou atualizar o olhar, mas, seis anos depois de sua estreia — em uma era em que “sororidade” é palavra-chave —, já soa datada. Mas chegaremos lá.



A história “original” de Cinderella, ou ao menos a versão mais popular, foi escrita por Charles Perrault, em 1697 (e não 1687). Era uma época em que as mulheres não tinham voz e o casamento era a única forma de segurança e status social. A heroína é, portanto, “salva” de uma madrasta cruel por um príncipe — a mensagem literal de que o amor masculino era a única via de libertação. Quando a Disney levou essa história ao cinema, em 1950, mais de dois séculos depois, essa ainda era uma verdade cultural.
A versão live-action de 2015, dirigida por Kenneth Branagh, tentou contextualizar as relações femininas e suavizar as rivalidades, mas sem romper completamente o molde. Já a produção de 1998, Ever After, com Drew Barrymore e Anjelica Huston, ainda é a mais ousada e moderna das adaptações. E em 2021, a versão de Camila Cabello para o Prime Video buscou dar um passo adiante, transformando a protagonista em uma mulher com voz própria.
Mas aqui, o foco é a madrasta — Lady Tremaine — e o que ela representa.

A vilã como espelho
A figura da mulher cruel com outra mulher — movida por ciúme, inveja ou ressentimento — atravessa séculos como uma “verdade” sobre o feminino. A Rainha-Má de Branca de Neve, Malévola, a Bruxa Má e a Madrasta Cruel de Cinderella formam a trindade original das vilãs femininas da Disney, todas reforçando a ideia de competição entre mulheres. Em suas primeiras versões, elas nem sequer tinham nome. Eram mulheres maduras, invejosas da juventude, beleza e pureza das enteadas.
Em Branca de Neve, a vaidade se confunde com feitiçaria. Em Cinderella, a crueldade nasce do orgulho. No desenho de 1950, o pai viúvo da protagonista se casa novamente para dar uma “família” à filha, mas morre logo depois. A madrasta então se revela quase diabólica (o gato, chamado Lúcifer, não é coincidência). Por puro capricho e inveja, transforma Cinderella em serva, impedindo-a de sonhar com o amor — ou, simbolicamente, com a liberdade.
Perrault descreveu Lady Tremaine como “a mulher mais orgulhosa e arrogante que já existiu”, com filhas “iguais a ela em tudo”. Já Cinderella era “a melhor criatura do mundo”, herdeira das virtudes da mãe. Na história original, a madrasta mostra imediatamente suas “verdadeiras cores”, odiando as qualidades que expõem as falhas das próprias filhas. O pai, “governado pela mulher”, assiste aos maus-tratos em silêncio. A moral de Perrault era clara: diante das adversidades, a nobreza interior vence a maldade.

A complexidade trazida por Cate Blanchett
Foi preciso uma atriz do porte de Cate Blanchett para dar a Lady Tremaine camadas mais humanas. No filme de 2015, quando Cinderella a confronta, a madrasta revela que seu primeiro casamento foi por amor, mas, viúva e vulnerável, precisou se casar novamente por segurança e status. Ao perceber que o novo marido não a amava — e que o amor dele ainda pertencia à falecida esposa e à filha —, nasceu o ciúme, o orgulho e, por fim, a crueldade.
Essa justificativa dá profundidade à personagem, mas mantém o mesmo dilema: a ideia de que a rivalidade feminina leva à maldade. É um passo à frente, mas ainda distante da empatia que Malévola conseguiu.



Curiosamente, há uma ligação simbólica entre as duas vilãs: Eleanor Audley, a mesma atriz, deu voz e imagem tanto à Malévola quanto à Lady Tremaine nas animações originais. Décadas depois, Angelina Jolie e Cate Blanchett retomaram esses papéis de forma distinta — uma pela redenção, a outra pela frieza.
O arquétipo das vilãs femininas
De todas as vilãs da Disney, Cruella De Vil talvez seja a que mais desafiou o molde — uma mulher que, assim como Malévola, rouba o protagonismo dos heróis. Na releitura de Emma Stone, Cruella ganha um passado e uma causa, e, ao lado da Baronesa de Emma Thompson, reúne a essência das vilãs originais: ambição, vaidade e dor.


Já Lady Tremaine, seja no desenho, nos remakes ou nos contos, continua sendo perdoada por Cinderella — o que talvez explique sua permanência como símbolo de um tipo específico de crueldade: aquela que nasce da frustração e do orgulho ferido.
Na nova versão, Idina Menzel assume o papel da madrasta na produção estrelada por Camila Cabello. Resta saber se, finalmente, veremos algo além da vilã — talvez uma mulher que, mesmo perdida na própria amargura, ainda carregue algum traço de humanidade.

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Não sei porque essa necessidade de justificar a maldade, só por ser feminina…
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Não tinha pensado assim, mas agradeço o ponto de vista!
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