De todas as personagens de Shakespeare, Ophelia sempre me emocionou mais. Vítima de circunstâncias, de política, de vingança, de fofoca e de machismo, não é sem motivo que ela enlouquece e tira sua própria vida em Hamlet. Usada por homens insensíveis à sua dor, Ophelia é o amor da vida do príncipe dinamarquês. Ainda assim, ela entra e sai da peça de mais de quatro horas com pouco espaço para ser ouvida de fato.
Em 2006, a escritora Lisa Klein resolveu dar à personagem protagonismo em meio à tragédia em Elsinore. O best-seller virou filme em 2018, com a linda Daisy Ridley no papel principal. E depois de muitos anos sem distribuição, o filme está disponível no Now.

O filme, para quem é fã da peça, é – no mínimo – irregular. Na verdade, passo o tempo adorando o potencial do elenco – Naomi Watts como Gertrude, Clive Owen como Claudius e especialmente George Mackay como Hamlet – praticamente jogado fora. Todos são excelentes atores, porém a confusão feita com a trama para forçar uma nova personalidade para Ophelia atrapalha tudo.
É que em tempos atuais, Ophelia – sempre passiva na peça do bardo inglês – precisa ser mais e com isso perde sua essência dramática.
Ophelia se apaixona por Hamlet e é seduzida por ele. Porém é alertada (tardiamente) pelo pai e irmão de que não deve ceder ao príncipe pois, mesmo que ele de fato a ame, um casamento entre eles é improvável e sem a virgindade, ela estaria perdida. Hamlet acidentalmente mata Polonius, o pai de Ophelia, que se envolve nas fofocas e tramas de Claudius. Laertes, o irmão que estava no exterior, é também manipulado pelo vilão. Sozinha, descartada por Hamlet (envolvido com sua vingança), Ophelia literalmente enlouquece. A sociedade a sufoca e massacra. Essa é a tragédia da personagem que precisava ser realçada, mas não trazer os elementos de Romeu e Julieta para a narrativa.

Daisy está muito bonita no papel, mas suas inflexões ainda remetem à Rey, de Star Wars. Sua Ophelia é inteligente, letrada, espontânea e corajosa. Nada disso contribui para a tragédia que se desenvolve diante de seus olhos.
Já George Mackay se confirma como um dos melhores de sua geração. Seu Hamlet aqui não demanda tanta profundidade pois os homens são coadjuvantes, mas, ainda assim, dá simpatia e credibilidade à personagem.

Com uma história fraca, fica ainda pior para Naomi Watts e Clive Owen. Clive me parece que nos últimos anos não se desafia mais. A peruca e a coroa parecem forçosamente falsas nele. Claudius é raso, um vilão simplista e óbvio, tudo que ele não é na peça. Reduzir sua motivação a tão pouco tira de Hamlet o valor de seu luto.

A pior liberdade, no entanto, foi com Gertrude. Embora desnecessário justificar a atração sexual da rainha pelo cunhado, a colocando como suspeita do complô é essencial também para dar dimensão a Hamlet. A autora também quis trazer novos elementos para a personagem, meio MacBeth e meio esotérica. A bruxa gêmea já é quase motivo de risada porque Naomi Watts nem faz esforço para diferenciá-las tanto. E aí ela entra como meio Frei Lourenço, meio Morgana. Não dá.

Volto à tecla que é uma pena gastar um bom elenco sem de fato usar um dos textos mais belos e densos da dramaturgia. Teria sido uma grande alternativa!