Em 2022, completam 330 anos do julgamento das Bruxas de Salem, um evento jurídico e religioso tão absurdo que entrou para o imaginário popular, mas que, efetivamente, aconteceu. Vinte pessoas foram condenadas à morte, acusadas de bruxaria sem sequer serem investigadas, tudo por se tratar de “sobrenatural”. Todas as vítimas foram apontadas por um grupo de meninas histéricas, lideradas por Abigail Williams.
O fato é tão vergonhoso e conhecido que, em 1953, Arthur Miller usou como base para criticar o período de Macartismo nos Estados Unidos. The Crucible é uma de suas melhores obras, certamente a minha favorita.
A peça, que estreou em 22 de janeiro de 1953, pode ter 69 anos, mas segue atualíssima. Reúne fake news, interesses escusos, histeria e injustiça, alguns dos pontos tratados com precisão e usando como base as pessoas reais (John Proctor e a própria Abigail, por exemplo), mas mudando as idades e teorizando sobre suas motivações. A peça é frequentemente remontada na Broadway: Liam Neeson e Laura Linney estiveram na produção de 2002 e, em 2016, Saoirse Ronan, Ben Whishaw e Sophie Okonedo voltaram a revisitar a história (trazida para dias atuais).
O filme, de 1996, tem as grandes atuações de Daniel Day Lewis, Winona Ryder e Joan Allen, todos indicados ao Oscar.


A História – nas versões verdadeira e de ficção – vilaniza Abigail Williams, pois, claramente, todos os acusados e condenados eram pessoas inocentes. Porém ela serviu também para eternizar a imagem de uma mulher rancorosa usando de falsidade para se punir inimigos. É sobre isso que faço uma reflexão hoje.
Sobre a “verdadeira” Abigail Williams
As acusações de bruxaria em Salem, uma pequena cidade em Massachussets, começaram a partir de uma menina de apenas 12 anos (alguns dizem 11), Abigail Williams. Há os registros jurídicos do julgamento como prova e com os relatos dela. Seu testemunho foi registrado oficialmente em 7 dos 20 casos de acusação de bruxaria, e estava envolvida em pelo menos 17 deles.
O relato aceito como base é de que, em janeiro de 1692, um grupo de meninas foi descoberto fazendo consultas esotéricas com a índia Tituba, escravizada e que trabalhava para o reverendo da cidade, Samuel Parris. As meninas queriam saber sobre os futuros maridos. Entre as consulentes, estavam a sobrinha do pastor, Abigail, e a filha, Elizabeth (Betty) Parris. Apavoradas, elas entraram em um estado de histeria que gerou convulsões e estados catatônicos. Sem entender o que estava acontecendo, o pastor chamou o médico da cidade, que diagnosticou os casos como “aflições demoníacas”, dando o gatilho para o drama que se desenvolveu a seguir.


O pânico de que havia bruxaria dentro da casa do pastor se espalhou rapidamente e as meninas foram interrogadas. No dia 29 de fevereiro de 1692, a acusação formal foi registrada nos autos: as meninas acusavam Tituba, Sarah Osborne e Sarah Good (as duas últimas, parteiras da cidade) de bruxaria. A essa altura, além de Abigail e Betty, Ann Putnam Jr. também participou das acusações e ataques histéricos. As meninas – todas com média etária de no máximo 13 anos – foram até os tribunais e ao verem as acusadas, se jogaram no chão, gritando e se contorcendo. Para a população, a prova de que estavam sob o controle das “bruxas”.
Tituba, a primeira acusada, fez uma lista de nomes de bruxas e bruxos e, com isso, conseguiu se livrar da forca. Mas foi Abigail a principal acusadora e líder das meninas. No total, foram 41 processos comuns e 17 capitais. Sua lista passou a incluir Martha Cory, George Burroughs, Bridget Bishop, Elizabeth e John Proctor, Mary Easty, John Willard, Mary Witheridge e Rebecca Nurse. No caso de Elizabeth Proctor, Abigail a acusou de “beber sangue” em uma cerimônia macabra e seu marido, John Proctor, de ter “aparecido em sonhos” a tocando nos seios. Apenas sua palavra servia como prova e todos foram julgados culpados.
A motivação da verdadeira Abigail nunca foi descoberta. Historiadores acreditam que ela gostou da atenção que passou a receber, quase como uma “santa”. Nunca ficou claro o grau de parentesco com os Parris ou quem eram seus pais, assim como o que aconteceu com ela após os julgamentos. Seu último testemunho está datado em 3 de junho de 1692 e qualquer informação sobre ela após essa data não foi registrada. Foi sugerido que Abigail nunca se casou, outra versão relata que fugiu de Salem e passou a viver na prostituição e até de que, com remorso, foi atormentada de culpa e teria morrido em 1697, sem ter sequer completado 17 anos de vida.
Nada é confirmado. Apenas Ann Putnam Jr. admitiu, cerca de 14 anos após os julgamentos, que mentiu em seus testemunhos, mas não sofreu nenhuma punição. Ficou por isso mesmo.
Na ficção, a maldade e a inveja como motivadores
Sem informações suficientes para contextualizar corretamente a motivação de Abigail, Arthur Miller fez uma escolha artística de envelhecer a jovem, que de 11 passou para 17 anos, assim como rejuvenescer John Proctor, de 60 para 40 e poucos anos. A partir daí, a acusação de impropriedade sexual passou a ser motivada por atração, traição e culpa. A imagem de uma jovem mulher frustrada e invejosa ganhou nome e personalidade, gerando uma série de “Abigails” ao longo do tempo.
Em The Crucible, embora muitos lucrem e incentivem Abigail, ela é quem encarna quase sozinha toda maldade do processo. Eventualmente descobrimos que ela passou um tempo com os Proctors e que “seduziu” John. Quando Elizabeth Proctor descobriu o caso dos dois, Abigail foi “devolvida” ao tio, sem a revelação da verdade para não arruinar a reputação dela. Em vez de agradecida pela segunda chance, a jovem desenvolveu ódio pela esposa do amante, passando a querer sua morte.
Sem medir consequências, Abigail lidera o movimento que viria custar as vidas de 20 pessoas, incluindo a do próprio John Proctor. Na peça e no filme, Abigail foge e termina seus dias na prostituição…


Em tempos atuais, homens ainda vêem “Abigails”, mesmo quando o crime existiu
Quando Arthur Miller escolheu o julgamento das Bruxas de Salém como metáfora para o Macartismo (um período da História americana que pessoas tinham suas vidas e reputações destruídas por acusações (frequentemente) infundadas de comunismo), a sociedade estava muito longe de onde estamos em 2022. Naquela época, culpar a mulher, era aceitável. Eram anos em que não se conhecia o conceito de sororidade, nós mulheres acreditávamos (erradamente) que amizade feminina era um conceito impossível. Não é mais o caso, ainda bem.
No entanto, ainda hoje ouvimos que os homens ficam “confusos”, têm dificuldade de entender o que é consensual ou não. Como se fosse a responsabilidade da mulher de explicar e na dúvida, eles não têm culpa. São ainda tantos os casos! Desde o príncipe Andrew a Woody Allen, aludindo que são vítimas inocentes de uma caça às bruxas, como se todas as mulheres que hoje os acusam, sejam versões de Abigail Williams.
A imagem da jovem – na ficção ou na realidade – conseguindo mandar para a forca seus inimigos apenas pelo que dizia, é o álibi perfeito da sociedade do passado para manter o status quo. É uma ideia que precisamos apagar. Se a verdadeira Abigail viveu em tempos repressores, que contribuíram para catalisar a tragédia, hoje as mulheres apresentam seus casos com testemunhas, fotos e e-mails, ou seja, com provas concretas que sustentam suas causas. Estão longe da histeria de Salém.
A História do julgamento das Bruxas de Salem não pode nem deve ser esquecida. Ela foi relativamente bem recontada em The Crucible, mas nem toda mulher é Abigail Williams. Fazendo jus às bruxas e às pessoas inocentemente acusadas por bruxaria, as acusações de hoje não são baseadas em sonhos, ou surtos. Temos que manter nossa atenção.
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