A atemporalidade moderna de Carmen

A obra original que fala da cigana Carmen e sua trágica história de amor com um soldado e um toureiro foi escrita em 1845, em um livro relativamente curto de Prosper Mérimée. Eu li o livro, mas, assim como o mundo, conheci Carmen através da música inesquecível de Georges Bizet. A história é inspirada em fatos reais, que o escritor francês ouviu em uma viagem pela Espanha, em 1830, seguindo a narrativa que a Condessa de Montijo passou para ele. Fascinado pela forte personalidade feminina que abraçava a liberdade mesmo encarando a morte é ainda popular dois séculos depois.

O livro é muito melhor do que qualquer adaptação já feita da obra, contada na primeira pessoa quando supostamente Merimée conhece um Don José fugitivo e atormentado. O que é lindo na obra – e a torna tão moderna – é que nenhuma mulher no século 19 tinha a firmeza e ousadia de Carmen, que passou a ser um refencial para o feminismo. Claro que no livro ela é a antiheroína, ou até mesmo a vilã, uma mulher irresponsável e sedutora, que “desvia” o homem honesto para o caminho do crime apenas para abandoná-lo depois por outro homem mais poderoso. Sem surpresas, a relação tóxica e abusiva entre Carmen e José acaba em feminicídio. Pelo menos no livro o assassino se arrepende, se entrega e paga pelo seu crime, sendo executado. Em geral, seguindo o exemplo da ópera, a história acaba com a cigana morta nos braços de um Don José choroso.

A ópera estreou 30 anos depois do livro, mas, mesmo em 1875, foi considerada “escandalosa”, “vulgar” e “desprezível” por dar destaque a mulheres “imorais”, que fumavam no palco, assim como violência e assassinatos. Precisou outra década para ganhar elogios e se transformar no sucesso que é até hoje, como uma das obras mais famosas e frequentemente executadas no mundo. A escolha dos libretistas foi a de focar a história mais na trágica relação de amor entre a cigana e o soldado, mudando alguns nomes de personagens e até relações.

Carmen, com sua cultura cigana e espanhola era um conteúdo obvio para o ballet, quer dizer, assim pensamos hoje, mas justamente seu realismo o afastava do universo de cisnes e fadas, precisando da genialidade de Roland Petit para fazer a primeira adaptação, em 1949. Ele criou a coreografia que até hoje é adaptada por companhias no mundo todo para sua esposa, Zizi Jeanmarie. O ballet – com a música de Bizet – também causou reação, pelo figurino que trazia Carmen em corset e as cenas sensuais do casal em um quarto. Brilhante.

Na União Soviética, a grande Maya Plisetskaya sonhava em adaptar a obra para os palcos do Bolshoi, mas temia que se usasse a música de Bizet teria uma reação negativa. Embora fosse casada com o compositor Rodion Shchedrin, a bailarina pediu a Dmitri Shostakovich para compor um balé sobre a história de Carmen, mas ele recusou justamente porque não queria ser comparado ã música definitiva de George Bizet. Aram Khachaturian, autor de Gayane e Spartacus, também negou o desafio e apenas assim Maya se voltou ao marido para pedir ajuda. Ao mesmo tempo, o Ballet Nacional de Cuba fez uma turnê soviética e assim a estrela do Bolshoi contou ao coreógrafo da companhia, Alberto Alonso, sobre seu sonho. Foi Alberto que criou o libreto e trabalhou com dançarinos do Ballet Nacional na coreografia, o que quer dizer que criou o balé em cima de sua irmã, a grande Alicia Alonso e apenas depois voou para Moscou para ensinar os passos para Maya.
Foi em cima desses ensaios que Shchedrin concordou em rearranjar a música da ópera e escrever partes originais para o balé.

O roteiro da versão russa foca mais no triângulo amoroso do que a versão de Petit. Nessa montagem, Carmen é uma mulher apaixonada e de espírito livre, em contraste com o temperamental e inconstante Don José. Há também uma versão dançada do “Destino”, que a cigana lê nas cartas e não questiona, com uma bailarina vestida de preto e representando o alter ego da personagem.

Os cenários assinados por Boris Messerer também interferem na narrativa. Eles mantém a dança dentro de uma praça de touros, simbolizando a vida, unindo a tourada e o destino de Carmen, com os espectadores mascarados e um juiz uniformizado representando a desaprovação da sociedade pelo comportamento pouco convencional da cigana. A cena do assassinato coloca todas personagens principais na mesma arena, cercando Carmen até sua morte.

E como o destino de Carmen é chocar, em 1967 a então ministra soviética da Cultura, Yekaterina Furtseva desaprovou a visão do ballet, tanto pela música modernista e as conotações sexuais da história que ao seu ver ofendiam a cultura espanhola. Nas palavras da ministra na época, o ballet fazia de Carmen, “a heroína do povo espanhol”, em uma prostituta”. Shostakovich entrou no circuito e conseguiu salvar a obra de ser banida do repertório da companhia. A briga entre as duas mulheres, no entanto, seguiu por mais tempo. Hoje Carmen é uma das obras populares no Bolshoi.

Mesmo com duas opções “definitivas”, ainda hoje Carmen segue ganhando “atualizações”. A mais recente, agora de 2021, traz a grande Natalia Osipova no papel principal em uma releitura moderna da obra assinada pelo holandês Didy Veldman. O ballet se passa nos dias modernos com um elenco de cinco atores interpretndoa atores, diretores e dançarinos trabalhando em Carmen e cujas as vidas privadas começam a sangrar nos personagens que estão trazendo à vida. Algo como Antonio Gades fez quando criou sua versão (e virou filme). O resultado, segundo os críticos, está de tirar o fôlego.

Natalia Osipova tem tudo para se igualar à Alicia Alonso, Maya Plisetskaya e Zizi Jeanmarie. Difícil para nós é imaginar a “melhor”. Alessandra Ferri, por exemplo, foi uma grande Carmen na versão de Petit assim como na versão de Alonso.

Veja algumas delas e compare!

Alicia Alonso
Maya Plisetskaya
Zizi Jeanmarie
Osipova na versão de Alonso
Oispova na versão de Petit

A versão atual

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