Prosper Mérimée publicou uma história sobre ciúme e feminicídio há 178 anos, mas até hoje sua personagem central fascina o mundo. Carmen, o livro, foi lançado em 4 partes, em 1845, inspirou uma ópera, pelo menos dois grandes balés, novelas, séries e filmes. A última adaptação marca a estréia do bailarino Benjamin Millepied na direção. Carmen, estrelado por Paul Mescal e Melissa Barrera transportam o drama de Don José, o soldado que “destrói sua vida” por causa da cigana Carmen, para a fronteira entre México e Estados Unidos. Falaremos do filme, mas antes é preciso focar em Carmen, o símbolo da mulher fatal que supera fronteiras de culturas e tempo.

Carmen: o livro e a origem
A cigana Carmen nasceu da imaginação do escritor Prosper Mérimée, famoso na França como arqueólogo e historiador (muitos dos monumentos em toda França foram preservados por conta de seu trabalho), que foi dos pioneitos do formato de novela, um gênero literário que surgiu por volta de 1829 e era essencialmente um conto longo ou romance curto. Como viajava com muita frequência, suas descobertas geravam muitas histórias curiosas, que foi colecionando com o tempo.
Sua passagem pela Espanha, em 1830, seria fundamental para o seu legado literário. Foi lá que estudou profundamente a cultura local e circulou entre a aristocracia espanhola, fazendo amizade com a condessa do Montijo, mãe da futura imperatriz Eugenie, esposa do imperador Napoleão III. Foi a Condessa que contou para ele a história verdadeira que iria inspirar Carmen, citada oficialmente em 1831, na série de artigos publicados por Mérimée sobre sua estadia no exterior. Segundo uma carta do escritor para condessa, ele admite que se inspirou na história de um gigolô de Málaga que matou sua amante, uma prostituta de quem tinha ciúmes. “Como venho estudando os ciganos há algum tempo, fiz de minha heroína uma cigana”, escreveu ele.
Carmen, é uma linda cigana que rouba um soldado, Don José de Navarro, que se apaixona por ela. Por ciúmes, ele mata outro homem e por isso se torna um bandido. Incapaz de ser fiel à um só amor, o destino de Carmen e José é violento e trágico.
Se você conhece bem a ópera de George Bizet, que foi o que popularizou e eternizou a história de Carmen, vai estranhar as diferenças do livro. Eu li e tive outra visão da personagem, que ficou reduzida a uma antagonista cruel e fria nas obras mais conhecidas. No livro ela é muito mais complexa. A começar que ao começar o romance com José ela já era casada e a primeira vítima da toxidade e violência do amor de José por ela, é justamente esse por homem, morto pelo ex-soldado em um ataque de “ciúmes”. Mais tarde, ainda obcecado com a cigana, José descobre que ela se apaixonou por um toreador e num rompante a mata, sendo preso e condenado à morte.
Carmen é contada na primeira pessoa, por Merimée, como se ele tivesse conhecido o casal e sido uma vítima dos dois. Quando ele descobre que José será executado pelo assassinato de Carmen, o reencontra e ouve sua confissão de como ele se apaixonou e se detruiu por Carmen, por isso a visão dela é tão misógina, porque refletia o machismo da época. Carmen era uma mulher livre, mas como cigana acreditava nas cartas do tarô. Quando as cartas revelam que ela não vai sobreviver à José, ela aceita seu destino, mas moderna, não se submete à ele.
Incrivelmente o livro não foi sucesso, Colomba, publicado antes (também com uma mulher destruindo a vida de um homem quando o envolve em um plano de vigança), foi mais popular. Apenas em 1875, após a morte do autor, que foi produzida a ópera que mudou radicalmente o texto original e eternizou a cigana.

Carmen, a ópera e os balés
Pelo bem e pelo mal, é a adaptação do livro de Merimée para os palcos que serviu como base para todas as versões da história de Carmen, que, como mencionei, a “simplificou” como uma mulher manipuladora e inconsequente. Don José é um homem correto e tirado de uma vida ao lado da pura e dedicada Micaela por um rompante da cigana, ofendida porque ele a rejeitou em sua primeira tentativa de sedução. Carmen quer – e consegue – transformar José em um bandido e assassino, mas logo se cansa dele e passa para uma próxima paixão. Desolado, desesperado e obcecado, ele a mata em um ataque de ciúmes, sendo preso no final da apresentação.
Os roteiristas Henri Meilhac e Ludovic Halévy dividiram a trama em 4 atos, e ela estreou em 3 de março de 1875, em Paris, chocando e escandalizando o público pelo tema, pela liberdade sexual da cigana e ter pessoas fumando no palco. É uma das óperas mais populares de todo tempo, com melodias reconhecidas mesmo foram do ambiente clássico, porque trouxe realismo para a Arte.
Na dança, Carmen tem duas versões populares. A de 1949, de Roland Petit, criada especialmente para sua futura esposa Zizi Jeanmarie, que estava enciumanda com o relacionamento dele com Margot Fonteyn e ganhou de presente o ballet que iria marcar a vida dos dois para sempre. E a outra, de 1967, é a produção do balé Bolshoi de 1967, com coreografia de Alberto Alonso e estrelada por Maya Plisetsskaya. Falaremos mais sobre ela em outro post. Para mim, além de Zizi a melhor Carmen dos palcos foi Alicia Alonso e é um papel tecnicamente complexo.

No cinema, Carmen a sedutora
Hollywood ‘decobriu’ Carmen em 1913, com o filme mudo estrelado por Marion Leonard, produzido várias outras versões desde então, incluindo Carmen Jones, com Dorothy Dandridge e Harry Belafonte. Uma das versões mais populares do filme é de 1983, assinada por Carlos Saura que mescla a história de Prosper Mérimée com o presente, onde um coreógrafo de dança flamenca (Antonio Gades) se apaixona por sua bailarina (Laura del Sol) com consequências trágicas. O filme é es-pe-ta-cu-lar, pela dança, atuação e roteiro.
A versão de Benjamin Millepied é um musical moderno, “reimagindo” Carmen sem seguir o enredo mais conhecido. Com música de Nicholas Britell e canções escritas por ele com Julieta Venegas, Taura Stinson e Tracy “The DOC” Curry, o filme se passa na fronteira do México com os Estados Unidos, onde Carmen (Melissa Barrera) é resgatada pelo soldado Aidan (Paul Mescal) e juntos lutam para fugir das autoridades enquanto se dirigem para Los Angeles.
O que fica claro é o apelo atemporal de uma história de amor tóxico, sufocante e ainda misógino. A liberdade de Carmen é incompreendida ou inaceitável por homens dominadores e por isso, sobrevive. São quase 180 anos e ainda a revistaremos muitas vezes, porque ela é o pássaro rebelde que ninguém aprisiona. Ninguém.

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