É difícil para Geração Z, distante tantas décadas de um ícone que mudou a cultura mundial, entender que Elvis Presley, ídolo dos Baby Booomers, foi alvo de piadas e referência de decadência para Geração X, que hoje o redime com fervor. Começo dizendo isso porque o novo filme de Baz Lurhman, Elvis, foi um projeto de fã apaixonado para um público aberto para conhecê-lo, porém, com uma narrativa sem isenção.
O Elvis de Baz é vítima, doce e trágico. Uma visão conveniente apoiada em uma estética arrebatadora (sua assinatura), mas que exclui/ameniza vários conhecidos fatos que poderiam tirar a simpatia da estrela, a justamente os que ficaram mais associados aos seus últimos anos. Os de um homem drogado, de Direita (apoiou Nixon e defendia o porte de armas), perigosamente flertando com a pedofilia (Priscila Presley tinha apenas 14 anos quando começaram a namorar, ele 25) e como se hoje ressalta, embora vendido como “apoiador” da música negra, foi estruturalmente apropriador da Arte de artistas negros marginalizados. Elvis pode ter morrido há 45 anos, mas ainda é polêmico.


Não sou contra limpar a imagem dele. Priscila Presley é incansável em manter sua lenda contextualizada e inquestionável, mas isso significa eleger quais os pontos fracos que possam ter alguma “justificativa”. Em tempos atuais, a vida amorosa do ídolo é o ponto mais sensível pois até pouco tempo a cultura machista permitia a diferença de idades e, segundo Priscila, ele jamais fez nada de impróprio até que ela chegasse à idade permitida. Ainda assim, Elvis namorou uma menina de 14 anos. Mas passemos a página.
Já falo do filme em si, ainda gastarei alguns parágrafos par situar a importância de resgatar a relevância de Elvis Presley.


Em tempos digitais temos dificuldade de lembrar ou entender como o mundo parecia ser grande, como era difícil que culturas viajassem e acima de tudo, como um rapaz de 18 anos literalmente mudou o mundo ao rebolar na frente de adolescentes. A comunicação de massa da época dependia de rádio (sem imagem), de TV restrita localmente por não usar satélites e de jornais e revistas que só chegavam às bancas dias ou horas depois de terem passado pelas gráficas. Em outras palavras, imediatismo tinha outro significado e Elvis Presley virou febre mundial apesar das barreiras de comunicação do seu tempo. Sozinho, mudou tudo. Música, moda, consumo, idolatria…
Há um mundo antes de Elvis e depois de Elvis. Sem exagero. Não haveria The Beatles sem Elvis. Para ajudar na perspectiva do que ele significou. Nenhum artista chegou aos pés de sua importância histórica porque ele foi o primeiro.
O rapaz caipira do interior do Tennessee, com uma beleza e voz ímpares, vinha de uma família tão pobre que mesmo brancos, viviam entre os negros, em uma época de segregação tão forte que isso significava que jamais teria alguma chance na vida. Mas foi justamente essa integração que mudou a vida de Elvis, pois teve acesso ilimitado à música e cultura ascendente, na maior e melhor fonte (a cidade de Memphis, para onde se mudou com os pais) e quebrou barreiras intransponíveis daquele triste período.


Elvis inventou o rock, mesclando blues, gospel e country. Fez isso ao tocar o que gostava, imitar os passos que via e ter um visual perfeito para aceitação geral. Sua vida foi intensa e rápida. Estourou aos 19, virou mega-estrela aos 25, casou aos 30, morreu aos 42. Nunca foi compositor, apenas intérprete, o que alterou o curso de sua carreira no final da vida. Ele era do tempo em que compositores escreviam para ele, mas com os Beatles, quem sabia escrever passou a cantar e seu repertório perdeu conexão com os jovens. Em pensar que Bruce Springsteen, ainda novo, escreveu Fire para o Rei, mas ele morreu antes de gravá-la.
Depois da longa introdução, falemos do filme. Em uma palavra? Maravilhoso.


Baz Lurhman se dedicou ao projeto por muitos anos e gerou muita desconfiança quando elegeu um relativamente desconhecido Austin Butler preterindo astros como Ansel Elgort, Miles Teller e Harry Styles. Quem lê o blog MiscelAna sabe que eu consegui pegar as semelhanças físicas, mas a descrença geral era forte. Mudou quando o trailer foi compartilhado, e, com o filme, já canto a pedra: Oscar, Oscar, Oscar. OSCAR. Inaceitável qualquer coisa menos do que isso.
Austin Butler É Elvis Presley e em momento algum percebemos a diferença. E aviso: o diretor brinca com isso pois ele mescla imagens do verdadeiro com o ator e apenas no final deixa claro o que estava fazendo. Não percebemos a diferença. Porque não há.


O filme é longo e se atém mais à abusiva relação de Elvis com seu empresário, Coronel Parker (Tom Hanks), cuja malícia e maldade conduziu a vida do cantor para uma morte prematura, isolamento e frustração. Elvis era o que se chamava de “bom garoto”. Interiorano, simples e apegado à família, fatores que Parker usou “contra” ele por toda sua vida. Por um bom tempo era um acordo que servia para os dois lados, mas muito mais porque Elvis era um garoto de 18 anos despreparado, deixando tudo nas mãos de quem se fingia amigo.
O filme conta rapidamente sobre a semente da fraqueza de Elvis, explorada por Parker. O cantor tinha nos ombros a “culpa” de ter que “viver por dois”, uma vez que seu gêmeo morreu no parto, e sua mãe, traumatizada, o sufocava de amor e atenção. O pai, fraco, era uma figura amorosa mas covarde. Elvis, como um “bom garoto”, se sentia responsável para cuidar dos dois e da família próxima. E assim o fez.


Se você não é familiarizado com os fatos e a ordem dos fatores, vai ser confundido pela frenética e tradicional maneira de Baz de contar suas histórias. Afinal, todos os seus filmes têm dois atos leves, acelerados, para entregar um terceiro lendo, triste e emocionante. Elvis não é diferente. Para aliviar os críticos de apropriação cultural, a amizade com BB King ganhou uma proeminência que não é frequentemente destacada, e é na voz do guitarrista que se reconhece o fato de que mesmo bem intencionado e amante da cultura negra, Elvis transformava a criação de outros, como Little Richard, em sua. A diferença entre o Coronel e Elvis estava na intenção. O cantor apreciava e amava a cultura negra, o coronel só o via como um meio de ficar milionário.


Tom Hanks, com uma maquiagem transformadora, imita como o Coronel falava e está diabólico. Ter um ator cujo público o identifica como um cara legal é essencial para termos a empatia com Elvis Presley quando cai na lábia manipuladora.
A trilha sonora é a parte brilhante do filme. Modernizando os ritmos, evitando cair na armadilha de fazer clipes, seja para resgatar um momento ou marcar passagem do tempo, típicos das biopics, consegue eleger bons momentos e trazer nostalgia no ponto certo. Sim, temos Hound Dog, Can’t Help Falling In Love, Are you Lonesome Tonight e outros hits, mas é o último clássico do Rei que ganha nova perspectiva. Suspicious Minds é sobre uma relação tóxica, aparentemente romântica, mas é o paradoxo do final da vida do astro, que literalmente canta da “armadilha que não consegue se livrar”.


É lindo, é emocionante e merece ser visto. Se quiser revistar o verdadeiro Elvis Presley, busque na Netflix um dos melhores documentários feitos sobre ele: Searcher, que originalmente era da HBO. O enfoque é sua música, mas como ela reflete o pessoal, é uma viagem no tempo fascinante.
Enquanto isso já sabemos: Tom Hanks e Austin Butler são os favoritos para o Oscar 2023. Vamos acompanhar.

