Boas pessoas podem perder seu caminho para o mal? Talvez na história recenteda TV ou streaming, apenas Daenerys Targaryen, de Game of Thrones, possa despestar a mesma reação nos fãs como a queda de Nate Shelley em Ted Lasso. A diferença está na construção da personagem, com o técnico sendo bem melhor estruturado que a Mãe dos Dragões, mas estamos nos antecipando.

Ted Lasso e Game of Thrones não poderiam ser mais diferentes, mas a conexão das séries fenômeno geralmente se faz quando acerta no estudo do comportamento humano e nisso têm chão em comum. Danny e Nate cresceram e superaram preconceitos, conquistaram respeito e amigos, porém ainda se sentem forçados a se compararem com outros. Jon Snow, assim como Ted Lasso, é popular e para Danny e Nate parece natural e sem esforço. Tudo que fazem é bom, é correto mas nos bastidores os dois sabem as falhas dos heróis e não se conformam que outros não os critiquem. É a teoria do espelho que Lacan que volto a citar: a projeção do que selecionamos ver, vindo das nossas expectativas e frustrações.
Poder – ou fama e adoração, que em geral vêm junto – são elementos perigosos para qualquer pessoa, ainda mais pessoas instáveis. Frodo Baggins foi corrompido pelo Anel em O Senhor dos Anéis, não fosse Sam o mundo teria pertencido a Sauron. Ivar the Boneless passou a se achar um Deus em Vikings, embora Ivar sempre tenha tido um DNA corrompido, tendo sido uma criança propensa a violência, mas ele também se projetava na perfeição física e popularidade de seu irmão, Bjorn Ironside, popular e imperfeito como ele mesmo. Espelho!


Enquanto as pessoas ainda discutem o destino trágico de Daenerys Targaryen, que passou cinco temporadas genuinamente liberando escravos, mas nas três últimas partes da história foi ficando obcecada com seu Direito por vingança e terminou dizimando uma cidade sem aparente razão, Nate Shelley foi revelando suas falhas mais claramente. Eu reparei todas as dicas do destino de Daenerys, suas hipocrisias crescentes e seu desequilíbrio mental à medida que foi ficando mais próxima de seu objetivo. Cercada de conselheiros comprometidos – Tyrion era um Lannister e Varys mudava de time de acordo com as circunstâncias – e confrontada com o heroísmo nato de Jon Snow, Danny não soube lidar com competição ou resistência, ficou indignada por não ter apoio imediato das pessoas que também buscavam mudança. Antes de entrar em Nate, um pouco mais sobre o tema Daenerys.
Daenerys sempre lidou com pessoas falsas e contrárias aos seus planos. Porém eram “estrangeiros” para ela, eram culturas a serem “conquistadas” ou dizimadas, afinal ela tinha o melhor exército e três dragões. Em Westeros era diferente. Era sua terra Natal, era a terra onde sua família era governante, era onde ela queria respeito, amor, e fidelidade. Lembrando os espelhos: ela virou o que mais criticava de seu irmão. Viserys II acreditava que havia pessoas sonhando com o retorno dos Targaryens e no meio do caminho ao trono, Daenerys passou a confundir o desejo de popularidade como uma realidade. Tyrion, em sua positividadae Ted Lassiana, atrapalhou. Daenerys não tinha como tomar o Trono sendo popular, mas ele alimentou esse sonho. Embora ele quisesse derrubar sua irmã, não conseguia mandar matá-la. Daenerys perdeu tudo ao se associar a ele. E Jon? Outra versão de Ted Lasso. Verdadeiro herdeiro e herói, era mais prático em lidar com impopularidade quando havia algo certo a ser feito, mas em um universo escasso de líderes, estava no auge da popularidade quando Daenerys entrou em sua vida. Ela passou a invejá-lo. Inveja é o sentimento que une Nate e Danny.


Os showrunners de Ted Lasso são geniais. Tudo na série parece simples, mas é profundo e amarrado. Vilões são tridimensionais (exceto Ruppert), e nos mostrou como o mal vence por fissuras na alma. Nate sempre foi talentoso, mas era ignorado e desprezado por ser filho de imigrantes. Quando Ted o eleva para líder, não estava emocionalmente preparado. “Sem dúvida, Nate sofre”, disse o ator Nick Mohammed. “Sua saúde mental não é a melhor que poderia ser, e ele tem muito que aprender – muito exame de consciência para fazer.”
A opressão da bondade, a toxidade da positividade, podemos trazer novos nomes e conceitos mas o que arruina a alma das pessoas é a inveja. Inveja que nasce da projeção do que você quer e que identifica em pessoas que “seriam iguais a você”, mas que alcançam o que você quer aparentemente sem a mesma dor. Ou “merecimento”. O velho: o que ele tem que eu não tenho? Em uma pessoa sofrendo, é o gatilho para o pior.
Os roteiristas da série da Apple TV Plus queriam mostrar que pessoas abusadas nem sempre conseguem superar o trauma e repetem o comportamento com outros, onde invertendo o sentimento de Poder se sentem “vingadas” e “seguras” como seus próprios atrozes. Algo em compartilhar/repetir a dor que sentiu fosse a alternativa de parar de sofrer. Quando outros se machucam como você, o problema ou fraqueza não são suas, mas de todos. Daenerys não era amada como Jon ou temida como Cersei, destruiu a roda para criar um mundo onde seria adorada e poderosa sem questionamentos. Nate, que é humilhado dentro e fora de casa, ver um Ted Lasso claramente incapaz para a função que exerce – ele nem sabe as regras mínimas de futebol! – é ofensivo e inaceitável. Mesmo que só tenha conseguido superar parte de seus problemas com a ajuda do técnico americano. “Há uma realidade nisso – que, na verdade, às vezes as pessoas são perseguidas em suas vidas, e você lhes dá um pouco de poder, e elas simplesmente decidem que é a única coisa que sabem fazer com outras pessoas”, concordou o ator Nick Mohammed. “Existe um certo condicionamento que vem com isso, então acho que é uma maneira muito inteligente e sensível de lidar com muitos assuntos muito difíceis.”

A inteligência da história está na complexidade da personalidade e proposta de Ted Lasso. Ted prioriza conexão humana, empatia e empoderamento para extrair o melhor de todos. Sua inabalável confiança na bondade, sua infindável habilidade de perdoar são cômicas e irritantes, mas ele vem de profunda dores pessoais para promover superação. Conhecemos duas delas, Ted jamais as ‘esconde’, mas ninguém o ouve. Na 1ª temporada ele fala que perdeu o pai aos 16 anos e depois confessa que aceitou ir para Londres porque seu casamento chegou ao fim, mas com a distância também ficou longe do filho que adora. Ao se dedicar aos outros, Ted tira o foco de si mesmo e isso pode parecer heróico, mas afeta diretamente sua própria saúde mental. A consequência são os ataques de pânico que no final da 2ª temporada provocam a cisão com Nate e a traição final.
Um dos erros de Ted talvez tenha sido ajudar muita gente ao mesmo tempo. Ajuda Rebecca (Hannah Waddingham) a superar seus problemas de confiança e voltar a ser quem era antes do casamento com Rupert (Anthony Head). Ajuda Jamie Tartt (Phil Dunster) a usar sua arrogância para o bem, a Roy Kent (Brett Goldstein) a se reinventar após a aposentadoria e acima de tudo, a Nate a ser alguém, a acreditar em si mesmo, mas sem saber da relação tóxica do assistente com seu próprio pai, não percebeu a armadilha. Prestem a atenção que Nate sempre agride as pessoas lembrando que ele está onde está por “merecimento”. Ele sabe de seu talento, ele sabe que trabalhou para chegar onde está, mas a figura paterna dele sempre o confronta com o risco de perder tudo, de ser um azarão e que nunca será o suficiente. Tanto que seu último diálogo com Ted no final da 2ª temporada é tão doloroso. “Todo mundo ama você – o grande Ted Lasso. Bem, acho que você é uma piada. Sem mim, você não teria vencido uma única partida e eles teriam enviado sua bunda de volta para o Kansas, onde você pertence – com seu filho. Porque você com certeza não pertence aqui. Eu sim”, ele praticamente cospe (um hábito que desenvolver). “Eu pertenço a este lugar. Isso não caiu no meu colo. Eu ganhei isso”, afirma mais para si mesmo do que para Ted. Espelho!
Já mencionei aqui que efetivamente é possível entender parte da ótica de Nate. Ted aparenta não saber o que está fazendo ao consultar a equipe por alternativas e nunca criar uma própria. Ele cuida da cabeça dos jogadores, Nate e Beard façam o resto que é no papel o que ele é pago para fazer. Não há um subordinado que um dia não questione saber o tanto ou mais que o chefe, pois a cadeira de comando geralmente afasta a pessoa do dia-a-dia que a levou a subir. Porém, sem o DNA da maldade (que Ivar The Boneless tinha) Nate pode ter um destino trágico como o de Daenerys: uma queda vertiginosa (no caso dela, morte). Porque por hora ele tem a matéria, o sucesso e o “respeito”, mas está sozinho. O sucesso subiu à cabeça, mas o complexo de inferioridade que é seu ponto fraco, está lá. Sua insegurança é transformada em agressões, insultando a todos que ele teme ser superior sem merecimento.
Ao inverter o quadro com Nate, série Ted Lasso mostra a superioridade de sua narrativa. Volto a citar Daenerys porque Game of Thrones fez a mesma inversão, sem o mesmo sucesso. Tudo que nos fez torcer por Nate na primeira temporada nos incomodaram na segunda e nos irritam na terceira temporada. A felicidade que sente quando é elogiado – que passou de surpresa, a orgulho para presunção – a busca pela validação de quem julga ser forte – primeiro Ted, depois Roy e agora Rupert – e assim vai. Ter Nate como o principal e aberto antagonista traz muita dor para quem acompanha a série, sem termos certeza de redenção ou final feliz. Bom, sendo Ted Lasso e não Game of Thrones, sabemos que o final será feliz… mas como chegaremos lá? Teremos que acreditar.
