Não é de hoje que ressalto os perigos da linha editorial dos documentários de hoje em dia, com frequência ainda maior, exibidos na Netflix. A riqueza de imagens prevalesce e a falta de contextualização também. O perigo de deturpação e propaganda são sempre iminentes. E com O Cerco de WACO (Waco: The Amercican Apocalipse) a armadilha se repete.
O documentário dividido em três partes pressupõe que mesmo estrangeiros e novas gerações (que não testemunharam a tragédia) saibam dos detalhes prévios de um dos fatos mais traumáticos da cultura americana em tempos pré-11 de setembro. Lembrando que o público alvo da plataforma, em sua grande maioria, nem era nascida em 1993 ou ainda engatinhavam, a palavra WACO faz pouco sentido, e ela é tão importante.
Anunciada como “o relato definitivo sobre o que aconteceu na cidade de Waco, Texas em 1993”, a série compartilha imagens e entrevistas inéditas, emocionantes e marcantes. A edição de imagens e som são incríveis, a falha está no roteiro.
Já começamos com o pé na porta, no início do cerco de 51 dias que parou o mundo há 30 anos. Tido como o maior conflito armado desde a Guerra Civil, no final tinha quase 80 mortos, sendo pelo menos 25 deles crianças. Porém para quem não acompanhou – vamos combinar que o número de tragédias e atentados infelizmente se multiplicou nas últimas décadas – a seita religiosa liderada por David Koresh é desconhecida, especialmente no exterior. Demoramos a chegar à explicação e apresentação ‘das personagens’ e o princípio básico do conflito.
O cineasta Tiller Russell (Night Stalker: Tortura e Terror) tem um dos materiais mais impressionantes do conflito: os vídeos feitos na unidade de negociação de crises do FBI, que transformam a narrativa em uma pavorante reality show, ainda mais que inclui imagens jornalísticas inéditas e gravações do FBI. Ele tenta balancear as impressões opostas de quem é realmente responsável pelo final apavorante, com sobreviventes falando sobre a seita e os policiais envolvidos na operação, mas – de novo – passa quase batido no efeito que Waco despertou em um país em ebulição.
Por exemplo, muitos vão se perguntar quem são os fiéis do Ramo Davidiano? Quem é/foi David Karesh? Por que estavam armados? As respostas foram dadas depois, o que achei depois de muito tempo, foram superficiais e partiram do pressuposto de que o público já saberia o que estava acontecendo. A citação e imagem de Tim MacVeigh, por exemplo, só impacta quem lembra quem ele foi e não-americanos terão mais dificuldade de juntar os pontos.
O que é mencionado, mas não explorado, é que o erro tático do governo em Waco – obviamente houve uma grande pressão política depois que o impasse estava sem solução por quase dois meses – transformou o fato em um gatilho perigoso. O atentado de Oklahoma (feito por MacVeigh), anos depois, “nasceu” de Waco. A corrente conservadora e defensora do porte de armas que também questiona o estopim do problema. E por aí vamos.

Se você ainda não assistiu à série, se nasceu depois de 1993 ou se nasceu antes mas não lembra de Waco, aqui vai uma breve cola.
O Ramo Davidiano é uma seita que saiu da Igreja Adventista do Sétimo Dia, de linha protestante e restauracionista, que surgiu por volta dos anos 1930s nos Estados Unidos. 25 anos depois, uma nova separação originou o braço Davidiano no qual David Koresh (nascido Vernon Wayne Howell) se uniu e passou a liderar. David se proclamava seu último profeta e eles se preparavam para a segunda vinda de Cristo, descrita na Bíblia como parte do Apocalipse.
Koresh, um pedófilo e fanático, conduzia a pequena comunidade isolada em uma área isolada a 16km de Waco, no Texas, com total domínio sobre seus seguidores. Os membros da seita compravam e usavam armas, como é permitido no Texas, mas depois de uma denúncia de que estariam também com bombas, a polícia foi ao local investigar. Ao chegar lá, os policiais foram recebidos a tiros, o que sugere que houve vazamento de informação. Mas isso não é esclarecido 100% no início, começamos direto testemunhando o primeiro ataque que provocou a tragédia final. Se não há uma conclusão sobre “como os membros da seita sabiam da vinda da polícia” e a razão pela qual foram agressivos, fica uma falha que nos faz acompanhar o resto estupefados. Nem mesmo fica claro quem atirou primeiro em quem, algo que até hoje é inconclusivo.
E sem esclarecimentos, a dúvida é alimentada até o fim. O que é incrível da série é que todo cerco foi registrado pela equipe de notícias local desde o momento em que a polícia começou a se reunir até o momento em que a tragédia terminou. O incêndio que efetivamente concluiu os quase dois meses de negociações é outra dúvida (crucial) até hoje não solucionada. O FBI alega que foi um suicídio em grupo com os próprios seguidores ateando o fogo (que começou simultâneamente em três lugares), mas sobreviventes mantém a possibilidade de um acidente ou até erro dos policiais. E isso que isso tem de relevante, além da morte de 25 crianças e 51 adultos? Para um Timothy McVeigh foi o Governo interferindo na liberdade das pessoas e a “justificativa” para matar milhares de outras – incluindo crianças – quando colocou a bomba no prédio do FBI anos depois. E como quer mostrar o diretor, também levou ao radicalismo mostrado nos ataques ao Congresso americano em 2021. Repressão e radicalismo, mais de 30 anos no mesmo lugar.
Mas, se não buscar informação que não é fornecida no documentário há o risco de má interpretação, isso sim um dos problemas crescentes e atuais. Cuidado!
