Aparentemente, a Netflix é a casa das Rainhas controversas. Em Bridgerton trouxe à tona a discussão centenária em torno da cor da pele da Rainha Charlotte, que para muitos foi a primeira rainha negra da história, embora sua pele fosse clara, ela tenha nascido na Alemanha e sua origem pudesse ser moura. Não fosse o suficiente, em maio além do spin-off que vai recontar a história de Charlotte, traz Cleopatra, mas uma Cleopatra negra, e o mundo voltou a eclodir: egípcia, de origem grega, ela seria negra mesmo?

A discussão gira em torno de racismo, de racismo estrutural e muita confusão genética. O cinema contribuiu para o questionamento, sempre colocando atrizes caucasianas em papéis que não eram necessariamente delas. Charlotte, por exemplo, foi interpretada por Helen Mirren em As Loucuras do Rei George e depois por Golda Rosheuvel em Bridgerton. Golda estaria mais próxima da “verdadeira” rainha, que teria tido sua pele e feições alteradas em muitos de seus retratos para “aliviar” o que não seriam os traços esperados de uma soberana. O fato é que ninguém tem certeza de nada. Charlotte nasceu em 1744, na Alemanha, e era descendente da portuguesa Margarita (sic) de Castro e Souza, filha do rei Afonso III e uma de suas amantes, a moura Madragana. Ou seja, a cor exata da pele dela não era ‘branca’, e o racismo é claro quando ainda em 2023 estamos discutindo isso. Sua história será o tema de Rainha Charlotte, que estreia no dia 4 de maio, em uma abordagem livremente fictícia e romanceada, recontando sua chegada à Londres com apenas 17 anos, sua ascensão ao Poder através do casamento com o rei George e como impôs mudanças na preconceituosa Corte britânica. A única parte que ninguém discute é o romance dela com George, afinal foi uma das raras uniões consideradas de amor genuíno na realeza.

Já Cleópatra, nem milênios resolveram o impasse genético. Historiadores divergem até hoje sobre sua aparência, mais de de dois mil anos depois de sua morte. E antes mesmo da versão do filme com Gal Gadot chegar aos cinemas, ou que o longa com Angelina Jolie saia do papel, a Netflix traz Rainha Cleopatra, uma série documental de apenas quatro episódios que traz a atriz Adele James no papel da lendária e icônica egípcia, gerando um movimento reativo violento contra a plataforma.
Com produção executiva de Jada Pinkett Smith, Rainha Cleopatra faz parte de uma série documental que se propõe a revisitar as vidas de grandes rainhas africanas, começando pela mais famosa de todas. Muito além da cor de sua pele, Cleopatra passou por uma narrativa machista que sempre ressaltou sua beleza e seus romances muito mais do que sua habilidade como líder de uma nação ocupada. É o que muitas mulheres estão mais preocupadas em consertar, dar à Cleopatra o que é dela: um reconhecimento por sua inteligência e habilidade políticas. No entanto, é o racismo que prevalesce. No caso, o famoso incesto dos Ptolomeus, família de origem grega de Cleopatra, que só se casava entre si (incluindo irmãos) para manter a pureza de sua linhagem. Historiadores egípcios são veementes em argumentar que está errado mostrá-la como branca ou negra, pois ela era mediterrânea e geneticamente, 100% grega.
A diretora da nova produção, Tina Gharayi, ela mesma Persa, obviamente discorda. Falou em um artigo na primeira pessoa publicado na Variety que “talvez não seja apenas porque eu dirigi uma série que retrata Cleópatra como negra, mas porque pedi aos egípcios que se vissem como africanos, e eles estão furiosos comigo por isso. Eu estou bem com isso”, afirmou. E vai além: “Cleópatra estava a oito gerações desses ancestrais ptolomaicos, tornando a chance de ela ser branca um tanto improvável. Depois de 300 anos, com certeza, podemos dizer com segurança que Cleópatra era egípcia”, argumenta. Porém se eles só se reproduziam entre si, geneticamente a probabilidade matemática é mesmo de manter o DNA Ptolomaico “puro”, em outras palavras, não havia miscigenação e ela poderia sim ter pele clara, mesmo que não caucasiana.

Cleopatra, mais do que Charlotte, está no coração da discussão afrocentrista. Basicamente o que se argumenta é que a tradição de recontar a Histórica sob ótica eurocêntrica, se enfatizam as conexões do antigo Egito com civilizações mediterrâneas e orientais, minimizando e até negando as raízes africanas. Seja como for, os ânimos estão tão exaltados que uma petição para cancelar o programa ganhou força online, com mais de 60.000 assinaturas pedindo o cancelamento do show argumentando que tem imprecisões históricas e é apropriação cultural. Ainda não vi nenhuma das séries, mas efetivamente sempre alerto para o perigo das revisitações e liberdades criativas que confundem pessoas que não tem acesso ou nem mesmo curiosidade às informações mais precisas.
O que fica ainda mais claro foi o drama do filme estrelado por Elizabeth Taylor. Na época ela ganhou um milhão de dólares pelo papel, algo astronômico nos anos 1960s. Os bastidores da produção foram tão descontrolados que levou a Fox à falência. E contribui, até hoje, para boa parte da discussão, que está muito longe de uma conclusão. Afinal, agora há um processo jurídico acusando a série Rainha Cleópatra de violar as leis de mídia e tentar “apagar a identidade egípcia”. Será que um dia haverá um fim pra essa briga?
Não se trata de preconceito. O que se trata é de forçar uma situação que não existiu. O que falariam se colocasse uma mulher branca representando uma pessoa negra da história?
Muita palhaçada e mimimi
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