A Escolinha do Professor Ted Lasso

Me dói reclamar de Ted Lasso, ainda mais supostamente na despedida. Até onde sabemos, faltam três episódios para darmos adeus à série e mais uma vez fiquei frustrada. De inteligente, sutil e amarrada, e emocionante, a série passou a ser piegas, didática e patronal. Personagens se transformaram 100%, outros não saíram do lugar. Tem gente que entra e sai, sem acrescentar nada (isso mesmo, Jack e Zava!) e a trolagem do #tedbecca ou da #keeleyroy a essa altura já está sem graça. A série não vai sair por cima, na minha opinião.

A queda vertiginosa do texto impacta momentos que seriam emocionantes, como o de Colin confidenciando com os amigos do AFC Richmond. Sei que as palavras colocadas no episódio foram lindas e importantes, mas, de novo, interromperam a narrativa. Aliás, esse é o grande problema da segunda metade da temporada, o compromisso de Ted Lasso de “ensinar” as pessoas como agir, pensar e viver. As aspas não são pela mensagem, mas pela mudança de transmiti-la. Até então, os pontos importantes de saúde mental, de empatia e de comprometimento, citando apenas alguns abordados, eram narrados de forma leve, precisa e por isso abraçados. As situações exploradas em dramas estavam nessa comédia, com respeito, porém inteligência. Repentinamente os roteiristas se acharam na obrigação de discursar e esqueceram de como estavam construindo as personagens. Venho reclamando desde o início, por exemplo, quando usaram o ‘time’ como alívio cômico em bloco, onde todos sempre estão juntos, onde o capitão dita o que comer, beber ou fazer nas horas livres e os jogadores aceitam? Tanta oportunidade perdida ali! São diálogos ensaiados e absolutamente sem nenhuma referência ao universo da série: o machista, opressor mundo do futebol. Mais ainda! Pior do quer jogadores de futebol estranhamente sensíveis à abuso, assédio e feminismo, ter um Ted Lasso ‘descobrindo’ a técnica de Cruyff já seria ofensivo, mas dar uma aula aos jogadores supostamente profissionais que estavam parecendo ouvir tudo pela primeira vez é falar com quem não ama futebol. Toda criança sabe do ‘futebol total’, mesmo quem nem joga bola. São detalhes que nos desconectam com o que até então a série vinha driblando com louvor.

Ted Lasso hoje é patronal e, com assustadora frequência, irritante. Os dois últimos episódios parecem treinamento de RH. Venho me manifestando quanto às mudanças nas histórias de Rebecca e Keeley, que perderam a conexão com importantes mensagens femininas de individualidade, recomeço e descobertas para voltarem ao velho estereótipo de mulheres neurotizadas em busca de amor. E La Locker Room Aux Folles foi feito para abordar a homofobia no futebol, porém para mim perdeu o pênalti. Vamos recapitular cada passo.  

Primeiro, Keeley, que põe a bola em jogo antes dos outros. Rapidamente os roteiristas nos posicionam que seu romance com Jack está mesmo ‘finito’. Keeley, que deu show de como agir com dois machões clássicos – Jamie e Roy – faz TODOS os “erros” de uma pessoa em fim de relacionamento, se arrastando atrás da namorada para ser “ghosted” e despachada. Ninguém está lamentando pela saída de Jack, até porque a série a incluiu do nada, expôs Keeley como uma ‘serial dater’, uma pessoa que só se relaciona com pessoas de seu ambiente de trabalho e, em especial, com relação de poder sobre ela. Jack, que embora claramente fosse uma pessoa invasiva e quase stalker, era apresentada como uma mulher descolada, pra cima, interessante. Mas não, ela é retrograda, preconceituosa, misógina e irresponsável. Quando o passado de Keeley coloca um obstáculo ela julga e pula fora, não antes de ter deixado nossa RP numa saia justa diante de sua equipe, pois ela namorou a chefe e levou um fora dela quando um antigo vídeo íntimo foi hackeado e postado nas redes sociais. Se Barbara ainda estiver trabalhando com Keeley depois disso tudo terei que revisar meu ponto de vista sobre ela porque se fosse coerente, Keeley estaria profissionalmente muito mal graças à Jack.

Nada mais de Keeley a partir daí. Rebecca, que contratou um jogador estrela e o perdeu como se nada tivesse acontecido, finalmente voltou a ser “Rebecca, a Chefe” para enquadrar Roy. O fato de que ele a desobedeceu e nem se importou quando ela fica irritada com isso mostra como ela perdeu o comando do negócio. A sorte dela é de estar em Ted Lasso, onde coerência não se aplica. Atravessando a narrativa de Roy, que precisa mudar, ela aceita as desculpas dele e ele faz um esforço para fazer o que tem que fazer no trabalho dele. A briga de Sam no Twitter com uma política conservadora jamais passa pela mesa dela ou pela pauta de Keeley, e isso me preocupa quanto à habilidade profissional de ambas, sem mencionar a falta de empatia que não fez nenhuma das duas – ou Ted, Beard ou Roy – procurarem o jogador para apoiá-lo. Não entendo como Sam ainda fica no AFC Richmond!

Antes de passar para o que interessa, outro à parte para falar de Jamie. Ele sofreu uma lavagem cerebral e deveria até assumir outro nome. Hoje é doce, é maduro, é companheiro, é culto e é talentoso. Pelo menos se manteve vaidoso! O Jamie que se chegou a ser expulso de um reality show por ser uma péssima pessoa está irreconhecível. Ted Lasso Way funciona!

Como excluir Nate? Depois mostrarem o doloroso caminho de erros que um homem bom, mas suscetível, pode passar, a série está agora ‘recuperando’ o ‘velho Nate’ com pressa exagerada. Sim, é inteligente agora mostrá-lo ainda doce, mas sua fachada de durão está caindo rapidamente e por que? Porque está apaixonado. Ele ainda tenta ser Ted, sem conseguir, mas não tem mais a mesma frustração sobre isso. Seria interessante, sim, mostrar essa mudança, mas ter justamente na garçonete racista o amor da vida dele é meio estranho. Já entendemos que Nate vai se decepcionar com Rupert quando o chefe tentar roubar Jade dele. Bravo para Nate ter dado o limite de desprezar uma noitada com Rupert, o Nate que conhecemos jamais teria coragem de fazer isso. Se estivéssemos em outra série, Jade derrubaria Nate ficando com Rupert, mas acredito que ela vai dar uma lição de moral no vilão mais simplista de todas séries e Nate vai voltar feliz para o AFC Richmond. Mesmo depois de tudo que fez. Tédio, Ted Lasso

E chegamos à Colin, a estrela do episódio e da temporada. Ao compartilhar o segredo do jogador, que é homossexual e não abre o jogo para ninguém, Ted Lasso flertou com um dos maiores tabus esportivos, e mais ainda, no futebol. É, portanto, uma narrativa importante e delicada, com as palavras e sentimentos apurados. Vemos um Colin empolgado com o namorado, mas eles mantem a fachada de bons amigos que é a escolha do jogador que diz não querer compartilhar sua vida com quem vai julgá-lo (depois, no episódio em Amsterdam, descobrimos que Colin levou um pé na bunda do namorado). Ele está certo, não tem mesmo a ‘obrigação’ de ‘explicar’ ou ‘revelar’ sua vida para ninguém, nem mesmo ou muito menos para o time. Héteros acham que estão certos em demandar explicações e essa insensibilidade é perpetuada em várias situações, em especial, com Isaac.

Vemos que depois de descobrir o ‘segredo’ de Colin, o capitão não interage com ele, perde o foco no jogo e é expulso de campo ao agredir um idiota da torcida que usa o termo pejorativo dos ‘machos ameaçados’. Não fica claro se é em defesa de Colin ou ofensa pessoal, talvez ambos. Com o avanço da história, Isaac faz perguntas ofensivas e estereotipadas de um machão preocupado de estar em ambientes íntimos com o amigo homossexual (chuveiro, vestiário), e se mantem insensível quando culpa Colin de não ter contado nada antes. Por isso a cena do vestiário, no qual Colin é forçado a abrir o jogo com os colegas, é relevante. Nenhum dos jogadores reagiu mal, e repetiram o mantra dos descolados “não me importo com o que você é, gosto de você da mesma maneira” ao qual Ted então faz um longo discurso como esse pensamento é errado: importar com as pessoas e o que elas são não é sinônimo de não aceitá-las. Quem rejeita é quem não se importa. É preciso se importar. Lindo né? Mas foi tão tatibitate, tão mastigado, com musiquinha ao fundo que me deu cárie. Colin merecia algo melhor do que isso. E o Ted Lasso que nos conquistou sabia entregar melhor do que isso. Foi didático em exagero, foi simplesmente um mal roteiro. Assim como a aula de colo lidar com nudes ou mensagens íntimas do episódio passado.

A pressão de ser positivo, de ser um veículo de mensagens sensíveis não pode pesar na estratégia de Ted Lasso, que está a um passo de virar A Escolinha do Professor Raimundo. Infelizmente assim, torço pelo fim do jogo. Vamos para o segundo tempo?

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