Como Carolyn Martens “matou” Eve

Estou DOIS anos atrasada porque Killing Eve estava escondida na Globoplay e “perdi” a conclusão da série quando foi ao ar, ainda em 2022. Ficou tão fora do radar que eu até busquei saber o que tinha acontecido, mas não fui impactada com a grande revelação e mudança da série, graças a super vilã Carolyn Martens (Fiona Shaw). Agora que a série chegou à Netflix, pude finalmente concluir a história.

Eu gostei muito da atuação de Jodie Comer como Villanelle a sociopata apaixonada por uma agente da MI5, Eve (Sandra Oh), mas foi a suspeita, articuladora e prática Carolyn que sempre me encantou, com suas palavras calculadas, seu mistério e imprevisibilidade. Honestamente, ela era mais interessante do que as duas protagonistas, crescendo a cada temporada até chegar ao final – nem tanto inesperado, mas, ainda assim, surpresa (sei que é paradoxal!) – onde ficou em aberto tanto uma continuação como um spinoff para tratarmos de sua juventude. Seria uma grande série!

Espiã: pura maldade ou dedicação à causa?

A vida de Carolyn é um tanto misteriosa e fascinante. Uma das melhores espiãs da Guerra Fria e filha de um grande espião, ela circulou em cenários frios, exóticos e banais, matando e evitando morrer com uma habilidade que nos fez questionar frequentemente se não havia uma sociopatia nela também.

Na temporada final, em 2022, chegou a ser noticiado que o canal ACM estava trabalhando em um spinoff que cobriria a juventude de Carolyn e os últimos episódios de Killing Eve nos deram uma ideia do que poderia ser.

Como chefe do departamento russo do MI6, Carolyn sempre se mostrou como uma líder estratégica e implacável. Ela tinha – como lembrou no final – várias habilidades: 1) identificar os verdadeiros talentos de cada um, fosse para matar ou para investigar (ou ambos) e 2) sabia calcular exatamente como cada pessoa reagiria e agiria, ganhando vantagem no jogo e raramente sendo surpreendida.

Com as greves e mudanças de mercado. é incerto se o projeto ainda está em consideração. O fato é que como a grande vilã de Killing Eve, Carolyn conseguiu tanto alcançar sua vingança pessoal contra seus inimigos como eliminar seus adversários de crime nos Doze.

O erro de Villanelle de poupar a britânica em um raro momento de empatia da sociopata, confirmou a superiodade de Carolyn nas maldades da série. Ela usou Eve e Villanelle para fazer o trabalho sujo, mas sacrificou ambas sem pensar duas vezes. Quem é a sociopata afinal?

Uma série feminina em universo masculino

Embora a série seja assinada por Phoebe Waller Bridge, Killing Eve é uma adaptação livre de um livro, Codename Villanelle escrito por Luke Jennings, onde, sem surpresa, a posição da chefia era ocupada por um homem. Foi a showrunner que transformou esse chefe em Carolyn Martens.

Sim, espionagem na TV e no cinema (ou ambos), teve personagens femininos como agentes (Nikita, de Luc Besson e Alias, de J.J. Abrams) e nos anos 1990s, a chefe de James Bond, “M”, foi a brilhante Judi Dench, mas, em geral, é um contexto patriarcal. Slow Horses também flerta com o tema, eventualmente.

Killing Eve, no entanto difere das demais por ter protagonistas e antagonistas e suspeitos sempre em personagens femininas fortes, imprevisíveis e aqui está um dos elementos chave do sucesso da série. A inversão maior, talvez, seja ver a violência da série – que é sangrenta, física e morbidamente engraçada – usando mulheres em vez de homens matando, brigando e vencendo.

A homossexualismo de Vilanelle, aberto e assumido, e de Eve, contraditório e resistente, não é o usual que homens acham sexy, mas faz parte da essência do universo feminino. Curiosamente são interpretadas por duas estrelas heteros enquanto Fiona Shaw, que é gay, interpretou a hétero Carolyn Martens. Sexo não é o que importa aqui, mas Fiona sempre sugeriu que o sucesso da série é porque as três personagens formam a “tríplice sagrada”, que une a mulher mais velha, a muito jovem e a de meia-idade como protagonistas, algo pouco explorado em séries e filmes. Mais ainda, Killing Eve navega em um mundo sombrio, violento e inesperado.

Se há o gato e rato emocional e físico entre Eve e Vilanelle, o que percebemos é que a gata maior de tudo é a inescrutável Carolyn Martens que está caçando algo que só fica claro na temporada final. Sim, desde que descobrimos a existência dos Doze desconfiamos que ela está envolvida. Como tudo em Killing Eve, é mais complexo que isso.

Escalar Fiona Shaw para o papel de Carolyn Martens fez toda a diferença. Atriz premiada do teatro, que foi uma das primeiras a questionar gêneros (interpretou Ricardo II nos palcos há 20 anos, quando equidade nem era uma palavra considerada necessária), foi uma das que percebeu que além de tratar o mundo da espionagem, algo essencialmente masculino na literatura ou cinema, ganhou tons feministas mais profundos em Killing Eve.

A manipuladora Carolyn Martens

Em tese, o show gira em torno de Eve Polastri (Sandra Oh), uma agente do MI5 que inadvertidamente se torna alvo de paixão da sociopata Villanelle (Jodie Comer), uma assassina implacável e perfeita, que circula pelo mundo com missões de matar bandidos ou corruptos. Sua psicopatia fazem dos crimes um desfile de moda e de violência, uma atração à parte.

Eve é recrutada por Carolyn (Fiona Shaw) para trabalhar em um departamento secreto do MI6, para não apenas localizar e prender Villanelle, mas também para investigar uma organização poderosa – a Doze – que contrata Villanelle e outros para serviços sujos. O mentor de Villanelle é o russo Konstantin (Kim Bodnia), com quem tem uma relação bizarra tanto familiar como profissional.

Enquanto Villanelle e Eve seguem na dinâmica de gato e rato (invertendo o que era tradicionalmente vivido por homem/mulher) é Carolyn que desperta maior curiosidade em nós. Ela e Konstantin compartilham um passado de espiões durante a Guerra Fria e mesmo no presente se cruzam em lados opostos.

Carolyn é misteriosa, elegante, fria e rápida em adaptar estratégias. Ela traz a sagacidade de Eve para uma teia de sigilo, espionagem e assassinatos onde rapidamente ninguém é confiável, nem mesmo ou muito menos, a própria Carolyn. A psicopatia de Villanelle é aterrorizante (embora Jodie Comer tenha trazido empatia para a personagem), mas ela, como vemos, é manipulável. Eve, nem tanto, mas sua obsessão é igualmente previsível. Fica fácil para a super espiã Carolyn Martens circular com tranquilidade entre elas.

Descobrir o presente e passado de Carolyn é complexo. Ela tem dois filhos, mas é Kenny Stowton (Sean Delaney), seu caçula e predileto, que muda tudo em Killing Eve. O conhecemos como um assistente atrapalhado e tímido, a quem ela trata com frieza, por isso, quando é revelado o parentesco, é um choque.

Infelizmente Kenny é morto e essa morte muda tudo na série. Passa a impulsionar Eve e Carolyn não para o mesmo objetivo, mas aparentemente opostos. Ambas querem destruir os Doze, mas rapidamente entendemos que há algo diferente na compreensão do que realmente dizem, em especial, claro, Carolyn. Quando é afastada da MI6 é ainda pior para ela: ela conhece esse universo melhor do que todos, e agora?

No passado de Carolyn, o futuro da série

Não demoramos a perceber que Carolyn tem uma ligação pessoal com os Doze, mas como ela efetivamente quer desmembrá-los é o que nos confunde porque assim como Eve, fica parecendo que ela é a cabeça da organização. Terminei a série com a mesma convicção. E nos importantes flashbacks da temporada final, reforcei minha teoria.

Em Berlim de 1979, vemos que Carolyn, ou Karolina (Stacy Thunes), estava disfarçada e se infiltrou nos membros fundadores dos Doze, usando o nome falso de “Janice”. Ela inclusive foi quem nomeou o grupo de anarquistas terroristas com esse nome. O líder, Johan (Siggi Ingvarsson) é amante dela.

Carolyn estava trabalhando com seu pai Dickie (Nigel Cooke), também agente do MI6, mas ele é assassinado por um membro dos Doze, justamente um de seus amantes, Karl (Louis Bodnia Andersen). O choque para nós é que Karl é Konstantin (Kim Bodnia), se passando por alemão. E no contexto geral, saber que Konstantin e Carolyn se amam, mas que ele matou os doisoutros amores de Carolyn – seu pai e seu filho, de quem Konstantin inclusive poderia ser o pai – é incômodo e denso.

Voltando aos anos 1970s, Johan suspeitava de Carolyn e de Karl, e por isso juntos, o casal acredita que o mata. Quando no presente Carolyn esbarra com Johan vivo e usando o nome de Lars (Ingvar Sigurdsson), ela vai atrás dele. Agora entendemos que a obsessão de Carolyn quanto ao grupo não era tão profissional: ela queria eliminar as provas de ter participado de sua criação.

Obviamente, é ainda cinzento por que, se Lars sabia tanto de Carolyn como de Konstantin, seguiu trabalhando com o russo e não tentou eliminar a espiã britânica. Hélène (Camille Cotton), por outro lado, agiu para apagar essa ponta solta.

Explicando o final de Killing Eve

A vida de Carolyn Martens era sua carreira na MI6. Não havia ou houve nada além dela. A partir do momento em que ‘perde’ seu cargo, mais do que vingar Kenny, ela quer voltar. E para isso, precisa atacar os Doze. Ninguém melhor do que ela.

Em poucas palavras: Carolyn fez uma promessa a MI6 que iria destruir os Doze para voltar. Isso pessoalmente a ajudaria em duas coisas: vingar Kenny e apagar seu passado. Afinal, como Karolina ou Janice, começou sua carreira investigando a raiz do movimento anarquista terrorista na Alemanha comunista. Se saiu tão bem que pôde ser a fundadora da organização e ascender na MI6. Para manter sua missão, sacrificou seu pai, mais tarde seu filho.

Ela sabia que Eve descobriria a verdade e usou para seu próprio jogo. E Villanelle? Bom, a psicopata foi a arma perfeita criada em conjunto com Konstantin. Não haveria como mudar sua natureza assassina, mas, como vemos, Carolyn sabe usá-la com perfeição. Pam (Anjana Vasan) seria a substituta. Na carta de despedida, acredito que Konstantin a presenteia e alerta que finalmente chegou a hora de matar Eve e Villanelle. Pam decidiu, para surpresa de Carolyn, não alimentar sua natureza assassina.

A própria Fiona corrobora a minha versão porque em uma entrevista comentou que não, tenha certeza se a morte das duas foi um “pedido” da MI6, mas “ela tem que provar que está disposta a fazer qualquer coisa para voltar” e “todos no mundo de Killing Eve sabem que podem morrer e ninguém é inocente”. Mais ainda, lembra que “Villanelle certamente mataria Carolyn. Esse é o jogo que eles jogam. Eve estava morrendo de vontade de ver Carolyn chegar a um final difícil porque ela estava zangada com ela há muito tempo. Não acho que seja tão estranho que alguém as matasse”, completou.

Ou seja, Carolyn cumpriu seu trato com a MI6 e eliminou, ou acha que eliminou, as duas últimas pessoas que poderiam ligá-la aos Doze. O fato de Eve ter sobrevivido deixa a história em aberto.

O que acha?

Um desejo

Seria tão curioso ver Carolyn Martens (Fiona Shaw) conviver com suas contemporâneas e imaginárias colegas de MI6 Diana Tarnever (Kristin Scott Thomas) e Ingrid Tearney (Sophie Okonedo), de Slow Horses, não concorda? A frieza, a inteligência, a classe e a ousadia dessa trinca seria de tirar o fôlego! Um mundo onde as mulheres são poderosas e decisivas sobre vida e morte. Eu veria!


Descubra mais sobre

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

4 comentários Adicione o seu

  1. Avatar de Bianca Hunter Bianca Hunter disse:

    Que artigo bem escrito! Parabéns.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Avatar de marcelo marcelo disse:

    Você escreve muito bem, parabéns!
    Algumas reflexões minhas…

    Infelizmente, essas roteiristas são fraquíssimas e perderam completamente a mão.

    O roteiro é cheio de pontas soltas, coisas inexplicáveis e oportunidades de aprofundamento perdidas.

    O que salva na série e me fez assistir até o final, deve-se exclusivamente a personagem Carolyn.

    Algumas coisas que concordo e discordo de você:

    1- Relação de Carolyn com os doze:
    Carolyn não é membra fundadora dos “doze”. Aquele grupo embrionário lá mostrado no flashback não é o mesmo da atualidade. A única coisa em comum é o Johan (Lars). Os outros membros lá da reunião do flashback viraram civis com vidas normais, como a própria Carolyn falou em uma cena. Além do Johan, o único outro nome ligado aos doze, é o de Konstantin. Todavia, o próprio konstantin afirma que não fazia parte dos doze e era apenas um intermediário… O konstantin numa das cenas fala que “trabalha” pra todas organizações de inteligência, outros grupos terroristas e também pros doze… Resumindo, é um bagre ensaboado levando a vida.

    Carolyn fica surpresa quando avista Johan em Cuba, portanto, não tem a mínima possibilidade de a Carolyn ser membro dos doze dissimulando tudo. Numa conversa com o Konstantin ela até divaga sobre como teria sido a vida deles se soubessem que não tinham matado o Johan.

    Tem também a relação dela com o Paul (membro do mi6 confirmado como membro de alto escalão dos doze”… Isso também desmente qualquer possibilidade dela fazer parte dos doze. Ela descobre que ele é um rato e ela mesma executa ele.

    Há também o capítulo final, onde ela faz as descobertas sobre as reuniões dos membros e acaba indo pro local desatualizado. Se ela fizesse parte, receberia por mensagem no celular o local correto da reunião, assim como aconteceu com Helene.

    Têm também inúmeras outras cenas que desmentem qualquer possibilidade dela fazer parte dos doze.

    Lembrando que na época do flashback, a Carolyn era uma novata se infiltrando em células anarquistas completamente embrionárias… O grupo de cachaceiros lá que não tinha nome, organização e objetivos definidos… Daí a brincadeira de ela mesma sugerir o nome.
    O que não fica explicado é porque o Johan (se for mesmo o membro fundador da nova organização) ter aproveitado o nome, haja vista que esse nome havia sido sugerido no contexto dos 12 membros lá do grupo de putaria/festas de Berlin.

    2- Morte do pai de Carolyn:
    O flashback explica o que aconteceu com o pai dela: Ele foi chantageado pelo Karl (Konstantin) e acabou se matando de vergonha. Inclusive ele deixa uma mensagem pra filha na porta, alertando-a que não deveria entrar na garagem para poupá-la. Carolyn confrontou o konstantin e ele confessou pra ela que se aproximou dela pra chegar ao seu pai. Em nenhum momento ele afirmou ter matado o pai dela, apesar de que sua chantagem contribuiu pro suicídio dele. Aqui descobrimos os papéis de cada um naquela organização embrionária dos doze: Carolyn (mi6) estava lá investigando os membros radicais (principalmente o johan) e Konstantin (kgb) estava se aproximado de Carolyn pra chegar ao seu pai.

    3- Morte do Kenny:
    Ele caiu mesmo do telhado por acidente. Konstantin amava a Carolyn e jamais mataria o filho dela. Quando a própria Carolyn vai confontrar o Johan em Berlin, ele mesmo fala pra ela que a única culpada pela morte dele, é ela mesmo, pois envolveu ele nas investigações. Depois ela fica lá analisando o caderno de anotações tentando achar alguma coisa que a livre da dor na consciência.

    4- Desfecho:
    Quanto ao final, a Carolyn desabafa que precisa de um “grande prêmio” pra apresentar ao mi6 visando ser perdoada e reintegrada. O grande prêmio acaba sendo a “notória assassina villanelle”. Isso tudo depois de deixá-la fazer todo o trabalho sujo eliminando os membros dos doze na reunião do barco.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Obrigada! Vou revisar meu ponto de vista!

      Curtir

Deixar mensagem para Bianca Hunter Cancelar resposta