A troca do nome da obra tem dupla motivação: a 1ª se diferenciar da série da Netflix, claro, e a 2ª reforçar que “marcada pelo fogo” deixa mais do que claro que a narrativa será focada na violência do reinado de Henrique VIII. O longa estreia em Cannes e marca uma das raras produções que fala do reinado mais frequentemente relatado pela história de Ana Bolena. E quem foi Katherine Parr?
Bom, o maior feito dela como Rainha foi o de sobreviver a um marido instável e violento, sem dúvida. Inicialmente retratada como uma mulher quase serviçal, que cuidou do Rei em seus últimos anos de vida e uma madrasta carinhosa também é mostrado como uma mulher apagada e conduzida pelo amante, Thomas Seymour, se a versão é ressaltar a astúcia de Elizabeth I que viveu um dos maiores escândalos de sua vida quando estava com Katherine Parr.
Por muitos anos retratada como matrona e uma cuidadora de luxo de um rei doente e acima do peso. Outros a veem como uma intelectual humanista, pró Reforma religiosa, e perspicaz. Tendo prestado atenção ao que aconteceu com duas das cinco antecessoras (sendo que a primeira dela era sua madrinha de batismo), Catherine evitou com cautela repetir os passos de Ana Bolena e Catherine Howard. A começar pela família, ‘adotando’ os três enteados (cada um de uma mãe diferente), com extremo carinho. Ajudou ao marido a se reconciliar com eles. Foi a primeira inglesa a publicar um livro em inglês com seu próprio nome, um passo audacioso em uma época em que uma mulher impressa era comparada a uma prostituta no mercado ou a um macaco com uma caneta. Nada disso foi ressaltado por muitos anos. No livro, a autora Elizabeth Fremantle fez um novo perfil da Rainha. No filme, a história terá suspense e tensão.

Katherine não nasceu para ser rainha, apenas circular entre os nobres. Seu pai era cortesão e sua mãe, Maud Green, amiga próxima e dama de companhia de Catarina de Aragão, 1ª esposa de Henrique VIII. Portanto Katherine teve testemunhas confiáveis de como o Rei agiu com a princesa espanhola e como as relações com ele eram volúveis. O pai de Katherine, Sir Thomas Parr, era tido como bonito e um dos amigos do rei, com sugestões de ter sido popular com a irmã de Henrique, a Princesa Margaret, a que foi casada na Escócia contra a vontade (como mostrado em The Spanish Princess). Ou seja, quando décadas depois Katherine Parr reencontrou o Rei, já duas vezes viúva, estava mais preparada do que suas antecessoras.
Sir Thomas morreu quando os filhos ainda eram pequenos e por isso a educação de todos ficou por decisão de Maud, que se certificou que suas filhas teriam o mesmo acesso à informação que o filho, William, o que já fez da futura rainha uma mulher notável e diferente das outras de seu tempo, sendo fluente em vários idiomas e exímia jogadora de xadrez. Nascida católica, se converteu ao protestantismo e, como todas mulheres, precisou se casar para garantir uma segurança material e social. Sem muita informação se o casamento com Edward Borough, filho do barão de Gainsborough Hall, foi feliz ou não , muitos apostam que não porque ela ficava isola, longe da Corte e não teve filhos. Em especial tinha problemas com o sogro, que interferia no casamento dos dois. Só melhorou quando se afastaram dele, mas Katherine ficou viúva com cerca de 21 anos.
O segundo casamento, um ano depois de perder o primeiro marido, foi o que efetivamente a deixou melhor financeiramente confortável. John Neville, terceiro Barão Latimer tinha mais de 20 anos que a esposa e dois filhos. Ela se apegou à menina (nem tanto o menino) e, mesmo longe da Corte, parece ter sido contente com o que tinha. Um primeiro ‘risco’ de vida de Katherine aconteceu quando, em 1536, John foi ‘forçado’ a participar da revolta conhecida como a “Peregrinação da Graça”, pró-católicos e, mesmo garantindo que fez o que fez para salvar sua família, sua reputação foi manchada por muitos anos.
Viúva novamente aos 30 anos, Katherine passou a ser uma das mulheres mais ricas da Inglaterra. Foi mais ou menos nessa época que se aproximou da princesa Mary Tudor, filha de Catarina de Aragão, passando a ser um das pessoas mais próximas dela. Na Corte, chamou a atenção de dois homens: Thomas Seymour, o ex-cunhado do Rei e – para ‘falta de sorte’ – o próprio Henrique VIII.
O ‘azar’ de Katherine é que, depois de ter sido casada com um menino e, em seguida com um ‘velho’, não é surpresa que estivesse apaixonada pelo sedutor Thomas Seymour, mas quando o Rei se encantava com uma mulher, ninguém podia recusá-lo. Thomas foi despachado para o exterior e, no meio tempo até sua volta, Katherine virou a sexta Rainha da Inglaterra em 33 anos.

Katherine Parr era tudo que Henrique estava procurando e ainda não tinha encontrado: uma companheira, jovem (o suficiente), bonita, dedicada e inteligente. Ela se envolveu diretamente na criação dos filhos do rei, sendo próxima dos três (mas, em especial, de Elizabeth I). Mas a vida na Corte era tudo menos tranquila, mesmo tendo sido elogiada por Thomas Wriothesley, secretário do rei, mais tarde um opositor. Parte dos problemas estavam na saúde debilitada do Rei que tinha rompantes de raiva alternados com docilidade, deixando todos sempre atentos e sem saber como ele estaria de um dia para o outro.
Assim como sua madrinha, Catarina de Aragão, Katherine chegou a ser nomeada “regente e governanta do reino” quando Henrique declarou guerra à França. Foi justamente por ter se provado capaz, de confiança e astuta que nesse período acabou conquistando inimigos entre os católicos como Stephen Gardner, Thomas Wriothesley e William Paget, que passaram a temer por sua influência sobre o Rei, especialmente no assunto de religião. Ela, uma reformista, poderia consolidar o movimento dúbio iniciado por ele 10 anos antes: quando rompeu com Roma, mas manteve práticas católicas e tradições da Igreja. Quando Katherine começou a se sentir confortável em ‘discutir’ assuntos sobre Deus, ela lembrou a Henrique VIII como tinha sido com Ana Bolena e o Rei ficou então vulnerável às críticas de quem não gostava da atual Rainha.
Ela quase foi presa, mas um engano (alguém encaminhou para ela a ordem de prisão que ainda precisava ser assinada pelo marido) a ajudou a contornar a situação e convencer ao marido de que era submissa. Se Henrique acreditou o mesmo não aconteceu com os conservadores que sabiam que a Rainha e suas companheiras burlavam as regras e estudavam a Bíblia juntas. Foi o que definiu o trágico destino de Anne Askew, presa, interrogada, torturada e morta sem entregar nenhuma evidência de que Katherine Parr era herege e conspiradora contra a Coroa. Ana Bolena não teve a mesma fidelidade. Ainda assim, foi um tempo de pânico para ela que sabia que o marido não teria dúvidas de mandar cortar sua cabeça.


Com a morte de Henrique VIII e a ascensão de seu filho, Edward, Katherine estava ‘livre’ pela primeira vez e não perdeu tempo. Em poucas semanas se casou em segredo com Thomas Seymour, gerando escândalo e criando novos oponentes que questionaram a pressa dos dois. Quem sofreu mais as consequências da decisão apressada foi Thomas, pois todos consideraram que agilidade veio dele, querendo se assegurar em uma posição de influência com o sobrinho agora rei, mas tendo o efeito contrário.
Esse período é o coração da trama da série Becoming Elizabeth, que trouxe a atriz Jessica Raines como Katherine e Tom Cullen como Thomas Seymour. Ainda cuidando de Elizabeth como própria filha, Katherine foi acusada de ter acobertado e até participado do abuso sexual que a menina sofreu por parte de Thomas, manchando a reputação de ambas pra sempre. A futura rainha de apenas 9 dias, Jane Grey, também estava sob tutela de Katherine quando tudo aconteceu. Assim como vimos na série, Elizabeth foi interrogada e negou qualquer envolvimento, mas Katherine – grávida pela primeira vez – a baniu de sua casa mesmo assim. Muitos historiadores citam que a convivência entre as duas impactou diretamente no exemplo de liderança feminina que Elizabeth viria a estabelecer quando virou rainha, anos depois.
Infelizmente o destino de Katherine não era sobreviver muito tempo depois de Henrique VIII: ela morreu seis dias após o nascimento de sua filha com Thomas Seymour, por causa de uma febre puerperal, comum nos pós partos e que já tinha tirado a vida de Jane Seymour.

A memória de Katherine Parr foi preservada com os valores da época, em outras palavras, com a imagem de uma mulher religiosa e dedicada ao marido, quase como uma cuidadora, mas com raras menções à sua sagacidade política ou cultural. Na ficção isso se repetiu, com versões como as de Becoming Elizabeth a colocando como uma mulher às vezes dúbia e sedutora, para aliviar ou até inocentar a futura Rainha Elizabeth I de qualquer relação imprópria. Dessa forma, críticos foram mais duros com a atriz Jessica Raines, mas eu gostei de ver uma Katherine viva, sensual e ainda assim, firme. A versão de Alicia Vikander em Firebrand ainda não é conhecida, mas dificilmente errará no tom.
O que importa é recuperar a narrativa sobre a Rainha, que soube como nenhuma de suas antecessoras conviver e driblar os perigos da política e da religião, talvez nem tanto, do coração…