A verdade sobre Bebê Rena

A primeira informação que a série Bebê Rena nos diz é “essa é uma história real”. E por causa disso, a produção que estreou na Netflix no dia 11 de abril, vem gerando discussões mundiais. O tema é atual, delocado e assustador: uma stalker e sua vítima. É tenso, é realista e extremamente bem interpretado e como todos que amam saber o que está por trás do que vemos, é natural e impulsivo buscar “a história verdadeira” que inspirou a peça e agora a série. Porém, Richard Gadd que interpreta a vítima, o comediante Donny Dunn que se desespera com sua stalker, Martha (Jessica Gunn), fez um pedido: parem de buscar a “verdadeira” Martha. É justo?

Daqui a pouco falo da série em si, que é a adaptação do material que Richard levou para o Festival de Edimburgo, em 2019 e agora está sendo dramatizado em oito episódios é inspirado na experiência do próprio ator. O desconforto de acompanhar o drama é imediato, especialmente porque vai direto ao ponto com uma extrema sinceridade do autor. Todos querem saber que é a “verdadeira” Martha e se não antecipasse o que está acontecendo agora fica a dica: não avise que é uma história real.

A onda de buscar histórias reais tem sido uma constante em maior volume nos últimos anos e eu “culpo” os reality shows. Inventar perdeu a graça, a autenticidade é uma obsessão que não encontra resposta na ficção. E sim, saber que a história é verdadeira dá credibilidade e outra dimensão à série.

Dito isso, a razão do apelo do autor tem sentido. Os “detetives da Internet” não se dão por satisfeitos com uma pesquisa de Google, eles querem “solucionar” o crime. Eles localizaram a provável verdadeira Martha e especulado descontroladamente e abertamente sobre sua identidade. “Por favor, não especule sobre quem poderia ser qualquer uma das pessoas da vida real. Esse não é o objetivo do nosso show,” ele implorou.

Quer irônico. A série é sobre uma agressora que ele insuspeitadamente colocou em sua vida e agora não apenas está reascendendo a ferida, despertou um exército de invasores digitais.

Um ótimo suspense e um tema delicado

Em tempos de redes sociais a multiplicação de stalkers só faz esse crime ganhar proporções assustadoras. E Bebê Rena nos conduz como uma série de decisões erradas pode colocar pessoas em riscos inimagináveis.

Como Donny (Gadd) entrou na armadilha? Porque sentiu pena de Martha (Gunn) e quando percebeu que ela era o perseguia já era tarde demais. Sua simpatia com ela e é apenas o começo de milhares de mensagens indesejadas, uma presença constante de uma mulher mais velha que é mais do que inconveniente, é claramente uma pessoa que precisa de ajuda. E aqui está a qualidade de Bebê Rena: a série foca também nos impactos emocionais da perseguição tanto no perpetrador quanto na vítima e nas pessoas da vida de Donny. Ao longo de três anos, Martha enviou mais de 41 mil e-mails, deixou 350 horas de mensagens de voz totalizando 350 horas, além das mensagens nas redes sociais e 106 páginas de cartas.

O que é interessante é que Donny não se vitimiza, ele se expõe sem pudor, desde sua vergonha para assumir seu namoro com uma mulher trans aos abusos que sofreu como criança. O drama que ele viveu, assim os que lidam com o crime na vida real, é que para quem está de fora é às vezes complexo definir onde começa o assédio criminoso e pior ainda, como lidar com ele antes que algo mais trágico aconteça. A série começa com Donny pedindo ajuda da polícia depois de seis meses tentando lidar com a situação sozinho, mas assustado quando ela agride sua namorada (Nava Mau).

Na vida real, Gadd conseguiu obter uma ordem de restrição contra “Martha”, mas os problemas seguiram. Houve críticas de que sua peça – que coloca um homem como vítima e uma mulher como agressora – fosse machista, mas ele queria compartilhar o inferno que é hoje um dos maiores perigos sociais. Seu medo só aumentou quando viu que, legalmente foi dificílimo lidar com o problema legalmente.

Como ele comentou em uma entrevista em 2019, ele errou ao identificar que “Martha” precisava de ajuda sem entender como ‘stalking’ funciona. “‘Stalking é uma doença mental e vem de algum tipo de vício em fantasia, essa ideia de que essa pessoa é a resposta para todos os seus problemas, então você ouvirá apenas o que quiser, desconsidere o resto”, ele comentou. “Quando estava passando por isso, senti que era uma história importante para contar… [e] isso era importante para as pessoas entenderem”, acrescentou.

Um trauma e que o levou ao outro

Numa auto análise, Donnie, assim como o ator, é sobrevivente de uma agressão sexual que de uma forma tortuosa o faz ter empatia com os problemas de Martha. Ele sabe e sente a culpa de muitos sobreviventes, que tem vergonha de se sentirem enganadas ou manipuladas, em outras palavras, “culpadas” pelo que aconteceu com elas.

“Num nível fundamental, vemos abuso sexual na televisão – não o tempo todo – mas muitas vezes como uma figura anônima no meio da noite”, disse ele em 2019. “Mas muitos abusos acontecem na dinâmica de poder, na dinâmica de trabalho, na dinâmica de relacionamento, em todos esses tipos de coisas. Eu realmente não tinha visto a complexidade psicológica disso com muita frequência na televisão e realmente queria mostrar a perniciosa do ciclo de preparação. , tanto quanto o ciclo de abuso.

Por mais que entenda o atual drama de Richard Gadd de tentar criar um limite onde se sentisse seguro para compartilhar sua história e ainda lidar com privacidade é um tanto confuso. A peça em si já era extremamente pública, mas levá-la para a plataforma mais popular do mundo, a Netflix, é contar para milhões de pessoas “uma história inspirada em uma real” e depois pedir para não tivessem curiosidade para saber mais.

E não, não é Martha a “investigada”, mas o abusador de Donny.

E vale assistir a série?

Vale. É bem construída, é bem editada e extremamente corajosa. Richard Gadd nunca vilaniza sua agressora ao ponto de torná-la superficial, e isso ao dar o contexto correto de seu papel em tudo. Diria que encarar o desconforto é extremamente importante, um conteúdo importante.

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