Os anos 1960s e 1970s foram extremamente populares na dança clássica, especialmente fora da Rússia. Um período de lendas, de criatividade e popularidade, muito por causa das presenças de Rudolf Nureyev e depois, Mikhail Baryshnnikov, dentro e fora do palco. Entre as mulheres que dançavam com eles, havia uma em especial que era “diferente”, a canadense Lynn Seymour. Escrevi sobre ela antes, aqui no Miscelana. No dia 7 de março de 2023, 24h antes de completar 84 anos, ela nos deixou. A causa da morte não foi divulgada imediatamente.
Como artista, a trajetória de Lynn é um exemplo de superação. Com “peso flutuante”, ou seja, nem sempre magra, ela era atriz, era incrivelmente flexível e acima de tudo, destemida. Musa de um gênio como Kenneth McMillan, que criou suas obras mais lendária em cima das habilidades de Lynn Seymour, ela foi preterida da grande estreia do que é considerado um dos trabalhos mais icônicos do Royal Ballet, a versão de MacMillan para Romeu e Julieta porque a companhia preferiu ter Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn nos papéis principais. Uma sombra na trajetória da dupla lendária que não teve interferência (mas tampouco negou a oportunidade). Por que essa rejeição é sempre citada? Pelo sacrifício pessoal da bailarina, que estava recém-casada e grávida quando surgiu a chance de trabalhar no balé e decidiu fazer um aborto para estar disponível. Ter a estreia tirada dela, a forçar a ensinar o papel para as “substitutas” e completada com o fato de que Lynn só conseguiu dançar o balé feito para ela depois de todas as outras bailarinas, é uma tristeza da mais citadas em sua história, mas Julieta não teria sido seu papel mais importante. Houve outros.


O legado de Lynn Seymour para a dança clássica é impressionante. Como diz bem o Telegraph, “ela liberou uma ousadia emocional desenfreada e um senso de modernidade em um estilo de balé inglês que Fonteyn havia marcado com gracioso decoro”, sendo considerada pela fundadora do Royal Ballet, Ninette de Valois, “a maior dançarina dramática em meio século”. Pelos movimentos criados por McMillan, Lynn criou papéis tridimensionais no balé clássico, densos, complexos, sensuais e desafiadores. Como alguns mencionam: realistas e humanos. Sexo – reprimido ou encorajado – estão nas obras da dupla e até hoje são incríveis.
Bertha Lynn Springett (depois adotou o nome Seymour) entrou para o Royal Ballet aos 15 anos, depois de um teste em Vancouver, Canadá, onde estudou balé com Jean Jepson, a quem creditava ter desenvolvido sua famosa musicalidade com aulas de sapateado.
Embora se sentisse uma “estranha” no Royal Ballet, Lynn se destacou rapidamente. Com apenas 17 anos foi escalada por MacMillan, também começando como coreógrafo, para o papel principal em The Burrow. Aos 20 já era uma das principais da companhia, estrelando o ousado e o devastador drama de abuso infantil, The Invitation. Frederick Ashton criou para ela e seu parceiro mais frequente, Christopher Gable, a obra The Two Pigeons e a versatilidade da bailarina ficou em evidência. Nos clássicos como O Lago dos Cisnes ela tinha dificuldade em terminar os 32 fouettés do cisne negro (teria conseguido apenas oito, com seu parceiro, Donald MacLeary improvisando o resto da música com vários saltos), mas nos balés de McMillan era incomparável. Dançou com Gable e Nureyev (de quem ficou muito amiga), Images of Love e então veio o drama de Romeu e Julieta.



Após o abuso psicológico e a desfeita artística, Lynn e McMillan deixaram o Royal Ballet, só voltando quatro anos depois. Nesse hiato, estiveram em Berlin, onde ele criou a primeira versão de Anastasia (o balé sobre a paciente mental que afirmava ser a última princesa Romanov), entre outros e Lynn foi mãe. Seu primeiro marido foi o fotógrafo Collin Jones, mas se separaram e os gêmeos eram filhos do bailarino Eike Walcz, com quem ela viveu por muitos anos. Fora do Royal, apareceu ao lado de Nureyev em La Sylphide, trazendo humor e leveza para o clássico do início do século 19 e influenciou o desenvolvimento da dança no Canadá.
Em 1970, com MacMillan como o novo diretor do Royal Ballet ela voltou para Londres e aí sim criou papeis que não foram tirados dela, como Anastasia e Mayerling e Month in a Country e Isadora. Sua musicalidade também ficou eternizada em clássicos como A Bela Adormecida e Cinderela, mas era obras contemporâneas de Jerome Robbins e Kenneth MacMillan que fizeram sua passagem pelo balé ser lendária.


Temperamental dentro e fora dos palcos, o estilo fashion de Lynn Seymour incluíam chapéus enormes, brincos e óculos de sol grandes. Surpreendeu a muitos quando adotou um corte de cabelo curto e encaracolado em vez do coque convencional. Lutava contra depressão e frequentemente estava “acima do peso”, sendo clara quando não concordava artisticamente com os coreógrafos (em Os Sete Pecados Capitais, de McMillan, teria virado as costas para o público na chamada de palco), deixou o Royal Ballet pela segunda vez em 1980, indo trabalhar como convidada – como atriz ou bailarina – na TV e no cinema, também coreografando.
Com três filhos e com quase 50 anos, dançou no London Festival Ballet, Royal Ballet e outras companhias, tendo interpretado a Rainha na versão de O Lago dos Cisnes, de Matthew Bourne. Como diretora artística do Ballet da Ópera da Baviera de Munique, revelou o talento do coreógrafo William Forsythe. Sua Giselle ao lado de Nureyev, filmada em 1980, a tinha mais velha e fora dos padrões estéticos da dança, mas é A melhor cena de loucura que já vi no balé.

Sem papas na língua, Lynn Seymour publicou sua biografia em 1984 (Lynn) e chegou a dizer que o balé era “a forma de arte mais chata e decadente que existe. É essencialmente uma forma morta com uma hierarquia morta.” Mas sua paixão. Ela defendia a preservação da memória de obras de dança britânicas, foi nomeada CBE e em 2000, o Lynn Seymour Award for Expressive Dance foi criado na Royal Ballet School em sua homenagem.
Além do casamento com Colin Jones, o relacionamento e filhos com Eike Walcz, Lynn foi casada com o fotógrafo Philip Pace, pai de seu terceiro filho, e com Vanya Hackel. Por muitos anos houve rumores sobre a natureza de seu relacionamento com McMillan, mas a bailarina negou qualquer romantismo entre eles.


Na escola do Royal Ballet, onde é descrita como uma artista artista “aventureira e independente”, a notícia de sua morte foi recebida com enorme pesar. “Ela era muito, muito especial”, disse o diretor artístico Christopher Powney. “Ela era conhecida por seus dons dramáticos surpreendentes e sua capacidade incomparável de transmitir um papel e convidar o público a sentir uma performance no nível mais profundo. Sua arte surpreendente é um exemplo brilhante para os jovens dançarinos da Escola, e sei que inúmeras gerações continuarão a vê-la como uma verdadeira inspiração”.
Que a dança sempre siga seu exemplo de individualidade.